Reportagem fotográfica da oitava sessão de apresentação de "Vozes do Pensamento", um livro de Isabel Rosete, na "Perlimpimpim", 02/10/2010, http://isabelrosetevozes.blogspot.com
Os meus mais notáveis agradecimentos à Aldina Ribeiro, ao Tiago e à Alda (da "Perlimpimpim"), pelo gentil acolhimento que me prestaram. Igualmente, aos colabores directos neste evento - Tomaz Parreira, António Azeredo, Gonçalo Rosete, Carolina Martins, Elvira Almeida, Carlos Cardoso, Maria Matos, Manuel Martins... e todo público que, nesta noite de celebração da Poesia, me acompanhou e aplaudiu com toda a consideração.
Bem-hajam,
IR
Um espaço de investigação, de escrita e de crítica literária; uma homenagem a todos os ecritores, nacionais e internacionais, que marcaram o meu percurso pessoal e profissional no domínio da Literatura.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Prémio Nobel da Literatura 2010
O escritor peruano Mario Vargas Llosa é o Prémio Nobel da Literatura de 2010, foi anunciado hoje em Estocolmo pela Academia Sueca. O peruano, de 74 anos, foi distinguido "pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens mordazes da resistência, revolta e derrota dos indivíduos", justifica a Academia em comunciado divulgado poucos minutos após o anúncio do Nobel.
Lista de obras de Mario Vargas Llosa editadas em Portugal:
“A guerra do fim do mundo” (Bertrand, 1984)“História de Mayta” (D. Quixote, 1987)“A cidade e os cães” (Europa-América, 1977/ Dom Quixote, 2002)“Quem matou Palomino Molero?” (Dom Quixote, 1988)“Elogio da madrasta” (Dom Quixote, 1989)“O falador” (Dom Quixote, 1989)“A tia Júlia e o escrevedor” (Dom Quixote, 1988)“Pantaleão e as visitadoras” (Europa-América, 1975/ Dom Quixote. 2001)“Conversa na catedral” (Europa-América, 1972/ Dom Quixote, 1997)“Como peixe na água: memórias” (Dom Quixote, 1994)“Lituma nos Andes” (Dom Quixote, 1994)“A guerra do fim do mundo” (Círculo de Leitores, 1995)“Cadernos de Dom Rigoberto” (Dom Quixote, 1998)“Cartas a um jovem romancista” (Dom Quixote, 2000/ Círculo de Leitores, 1999)“A festa do chibo” (Dom Quixote, 2001/ Círculo de Leitores, 2001)“A guerra do fim do mundo” (A guerra do fim do mundo)“A casa verde” (Dom Quixote, 2002)“O paraíso na outra esquina” (Dom Quixote, 2003)“A tia Júlia e o escrevedor” (Dom Quixote, 2003)“Travessuras da menina má” (Dom Quixote/ Círculo de Leitores, 2006)“Israel Palestina: paz ou Guerra Santa” (Quasi, 2007)“Diário do Iraque” (Quasi, 2007)
Lista de obras de Mario Vargas Llosa editadas em Portugal:
“A guerra do fim do mundo” (Bertrand, 1984)“História de Mayta” (D. Quixote, 1987)“A cidade e os cães” (Europa-América, 1977/ Dom Quixote, 2002)“Quem matou Palomino Molero?” (Dom Quixote, 1988)“Elogio da madrasta” (Dom Quixote, 1989)“O falador” (Dom Quixote, 1989)“A tia Júlia e o escrevedor” (Dom Quixote, 1988)“Pantaleão e as visitadoras” (Europa-América, 1975/ Dom Quixote. 2001)“Conversa na catedral” (Europa-América, 1972/ Dom Quixote, 1997)“Como peixe na água: memórias” (Dom Quixote, 1994)“Lituma nos Andes” (Dom Quixote, 1994)“A guerra do fim do mundo” (Círculo de Leitores, 1995)“Cadernos de Dom Rigoberto” (Dom Quixote, 1998)“Cartas a um jovem romancista” (Dom Quixote, 2000/ Círculo de Leitores, 1999)“A festa do chibo” (Dom Quixote, 2001/ Círculo de Leitores, 2001)“A guerra do fim do mundo” (A guerra do fim do mundo)“A casa verde” (Dom Quixote, 2002)“O paraíso na outra esquina” (Dom Quixote, 2003)“A tia Júlia e o escrevedor” (Dom Quixote, 2003)“Travessuras da menina má” (Dom Quixote/ Círculo de Leitores, 2006)“Israel Palestina: paz ou Guerra Santa” (Quasi, 2007)“Diário do Iraque” (Quasi, 2007)
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
"Um vasto Poema"
"Por su súbita emergencia y su vigor creador, Teotihuacán parece concebida en el deslumbramiento de esta revelación exaltante y, como en un vasto poema, cada uno de los elementos que la componen forma rigurosamente parte de un todo altamente inspirado" (Laurette Séjourné)
"Aún vivo con sus ojos cerrados y calientes,
tal vez sin que él lo note, el corazón le arrancan." (Carla Faesler)
A Calçada dos Mortos nos recebe como quem abraça antigos visitantes há muito esquecidos. Sua geometria astronômica e gris acalenta um passado de vigor e cor. Todos os apetrechos que a modernidade nos impõe tombam nesta caminhada, agora seremos apenas humanos. Sorvo a secura de seu ar. A vegetação que vemos nesta que era a rua principal de Teotihuacán, a Cidade dos Deuses, é rala, de um verde desbotado. Entrecortam a calmaria gritos dos vendedores de quinquilharias, murmúrios dos turistas. O guia Tona, de apresentação e inglês impecáveis, mostra-nos algo antes de nos deixar sozinhos desbravando o sítio arqueológico. O único som que vem do passado, com os lamúrios dos sacrificados para que o sol renascesse sempre, é o surpreendente silvo de pássaro que ecoa ao se bater palmas posicionado o corpo em determinado ponto da calçada.
Das escadarias que dão acesso ao topo da Pirâmide do Sol e a da Lua não vemos sangue escorrendo, como retratou Diego Rivera, nem as cores fortes que cintilavam na base enquanto os sacerdotes calcavam seus pés numa ziguezagueante subida. A maior cidade da América pré-colombiana é ruínas. Certificadas pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, mas ruínas, pedras que escapulam dos degraus ― migalhas de construções, como a de Malinalco, templo dos bravos guerreiros águia, que vieram do vento ou das montanhas e que recolho com as mãos para uma lembrança ―, enquanto os arqueólogos tentam a todo custo reconstruí-las e preservá-las, pedaço a pedaço.
Nestas duas semanas imersa pela e para a Poesia, me pergunto diante dessa convivência com dezenas de pessoas que, em seus países de origem, escrevem e estão nessa roda ― mesmo que seja para virar copos, distribuir livros entre si, escrever, enfim, na calma ou no ―, a poesia é monumento sólido? Ela traz uma mensagem, latente e fervente, como os antigos moradores de Teotihuacán? Como faz a poesia para levar seu canto vibrátil de geração a gerações, se não é apenas onda mecânica que se alastra? Diz a tradição mexica que uma nova pirâmide deveria ser construída sobre a outra a cada ciclo de 50 anos, para mostrar que aumentava o poderio do grupo. No Templo Maior, resquício asteca no Zócalo, podemos ver hoje e até andar por entre estas diversas fases que apareceram sob as escavações realizadas na década de 1970. Há fases da pirâmide que nem mesmo algumas gerações antiquíssimas viram e que nós temos o privilégio de ver, ressaltam. Pois se nós, poetas do hoje, participamos dessa camada aparente de pedra que se sobrepuja às anteriores, delas fazemos nossa base, nos imbuímos de sua estrutura e a modificamos ― somos, então, essa tradição que se faz e refaz, servil, arrogante, livre, rimada, modesta ou mordaz.
Podemos não saber muito bem tudo o que há por detrás dessa vontade, essa herança que nos sobrevoa, mas ela está lá a ser reconhecida. Logo ali, na Casa de la Primera Imprenta de América, de 1536, os primórdios de nossas relações tipográficas. E a poesia está aí, nos lados, no topo da pirâmide, nas entranhas, pois ela é a própria vida em estado pulsante, repaginando-se, resignando-se. Linguagem-monumento a ser reconstruída e sedimentada, destruída, revelada, apurada. Eu subo devagar os degraus da Pirâmide do Sol, os degraus são largos, o joelho resiste ao impacto e imagino os moradores de sua época de esplendor subindo correndo, o coração, sem medo? A constituição física baixa e troncuda, a vida breve. E dali, o firmamento é outra vez acre e pedregoso, e ousa ser o ontem em pleno dia resplandecente, e eu teimo em ser o agora, de papo para o ar. Eu subo devagar os degraus da Pirâmide da Lua, este joelho dobrado rendendo honrarias ao infinito.
Nota do Editor
Leia também "Tempo vida poesia 1/5", "Tempo vida poesia 2/5 e "Tempo vida poesia 3/5".
IR
"Aún vivo con sus ojos cerrados y calientes,
tal vez sin que él lo note, el corazón le arrancan." (Carla Faesler)
A Calçada dos Mortos nos recebe como quem abraça antigos visitantes há muito esquecidos. Sua geometria astronômica e gris acalenta um passado de vigor e cor. Todos os apetrechos que a modernidade nos impõe tombam nesta caminhada, agora seremos apenas humanos. Sorvo a secura de seu ar. A vegetação que vemos nesta que era a rua principal de Teotihuacán, a Cidade dos Deuses, é rala, de um verde desbotado. Entrecortam a calmaria gritos dos vendedores de quinquilharias, murmúrios dos turistas. O guia Tona, de apresentação e inglês impecáveis, mostra-nos algo antes de nos deixar sozinhos desbravando o sítio arqueológico. O único som que vem do passado, com os lamúrios dos sacrificados para que o sol renascesse sempre, é o surpreendente silvo de pássaro que ecoa ao se bater palmas posicionado o corpo em determinado ponto da calçada.
Das escadarias que dão acesso ao topo da Pirâmide do Sol e a da Lua não vemos sangue escorrendo, como retratou Diego Rivera, nem as cores fortes que cintilavam na base enquanto os sacerdotes calcavam seus pés numa ziguezagueante subida. A maior cidade da América pré-colombiana é ruínas. Certificadas pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, mas ruínas, pedras que escapulam dos degraus ― migalhas de construções, como a de Malinalco, templo dos bravos guerreiros águia, que vieram do vento ou das montanhas e que recolho com as mãos para uma lembrança ―, enquanto os arqueólogos tentam a todo custo reconstruí-las e preservá-las, pedaço a pedaço.
Nestas duas semanas imersa pela e para a Poesia, me pergunto diante dessa convivência com dezenas de pessoas que, em seus países de origem, escrevem e estão nessa roda ― mesmo que seja para virar copos, distribuir livros entre si, escrever, enfim, na calma ou no ―, a poesia é monumento sólido? Ela traz uma mensagem, latente e fervente, como os antigos moradores de Teotihuacán? Como faz a poesia para levar seu canto vibrátil de geração a gerações, se não é apenas onda mecânica que se alastra? Diz a tradição mexica que uma nova pirâmide deveria ser construída sobre a outra a cada ciclo de 50 anos, para mostrar que aumentava o poderio do grupo. No Templo Maior, resquício asteca no Zócalo, podemos ver hoje e até andar por entre estas diversas fases que apareceram sob as escavações realizadas na década de 1970. Há fases da pirâmide que nem mesmo algumas gerações antiquíssimas viram e que nós temos o privilégio de ver, ressaltam. Pois se nós, poetas do hoje, participamos dessa camada aparente de pedra que se sobrepuja às anteriores, delas fazemos nossa base, nos imbuímos de sua estrutura e a modificamos ― somos, então, essa tradição que se faz e refaz, servil, arrogante, livre, rimada, modesta ou mordaz.
Podemos não saber muito bem tudo o que há por detrás dessa vontade, essa herança que nos sobrevoa, mas ela está lá a ser reconhecida. Logo ali, na Casa de la Primera Imprenta de América, de 1536, os primórdios de nossas relações tipográficas. E a poesia está aí, nos lados, no topo da pirâmide, nas entranhas, pois ela é a própria vida em estado pulsante, repaginando-se, resignando-se. Linguagem-monumento a ser reconstruída e sedimentada, destruída, revelada, apurada. Eu subo devagar os degraus da Pirâmide do Sol, os degraus são largos, o joelho resiste ao impacto e imagino os moradores de sua época de esplendor subindo correndo, o coração, sem medo? A constituição física baixa e troncuda, a vida breve. E dali, o firmamento é outra vez acre e pedregoso, e ousa ser o ontem em pleno dia resplandecente, e eu teimo em ser o agora, de papo para o ar. Eu subo devagar os degraus da Pirâmide da Lua, este joelho dobrado rendendo honrarias ao infinito.
Nota do Editor
Leia também "Tempo vida poesia 1/5", "Tempo vida poesia 2/5 e "Tempo vida poesia 3/5".
IR
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
A TODOS OS "DANTAS" E "ANTI-DANTAS":
Este texto virulento do jovem Almada (que contava 23 anos) terá sido escrito entre Abril e Setembro de 1916, sendo, portanto, anterior à conferência de 1917, início oficial do movimento futurista em Portugal.
Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, todo grafado em maiúsculas e utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia - PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava: "Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi". Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar.
Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio.
MANIFESTO ANTI-DANTAS E POR EXTENSO
por José de Almada-Negreiros
POETA D'ORPHEU FUTURISTA e TUDO
BASTA PUM BASTA!
UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D'INDIGENTES, D'INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO!
ABAIXO A GERAÇÃO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS A CAVALO É UM BURRO IMPOTENTE!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS À PROA É UMA CANÔA UNI SECO!
O DANTAS É UM CIGANO!
O DANTAS É MEIO CIGANO!
O DANTAS SABERÁ GRAMMÁTICA, SABERÁ SYNTAXE, SABERÁ MEDICINA, SABERÁ FAZER CEIAS P'RA CARDEAIS SABERÁ TUDO MENOS ESCREVER QUE É A ÚNICA COISA QUE ELLLE FAZ!
O DANTAS PESCA TANTO DE POESIA QUE ATÉ FAZ SONETOS COM LIGAS DE DUQUEZAS!
O DANTAS É UM HABILIDOSO!
O DANTAS VESTE-SE MAL!
O DANTAS USA CEROULAS DE MALHA!
O DANTAS ESPECÚLA E INÓCULA OS CONCUBINOS!
O DANTAS É DANTAS!
O DANTAS É JÚLIO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS FEZ UMA SORÔR MARIANNA QUE TANTO O PODIA SER COMO A SORÔR IGNEZ OU A IGNEZ DE CASTRO, OU A LEONOR TELLES, OU O MESTRE D'AVIZ, OU A DONA CONSTANÇA, OU A NAU CATHRINETA, OU A MARIA RAPAZ!
E O DANTAS TEVE CLÁQUE! E O DANTAS TEVE PALMAS! E O DANTAS AGRADECEU!
O DANTAS É UM CIGANÃO!
NÃO É PRECISO IR P'RÓ ROCIO P'RA SE SER UM PANTOMINEIRO, BASTA SER-SE PANTOMINEIRO!
NÃO É PRECISO DISFARÇAR-SE P'RA SE SER SALTEADOR, BASTA ESCREVER COMO DANTAS! BASTA NÃO TER ESCRÚPULOS NEM MORAES, NEM ARTÍSTICOS, NEM HUMANOS! BASTA ANDAR CO'AS MODAS, CO'AS POLÍTICAS E CO'AS OPINIÕES! BASTA USAR O TAL SORRISINHO, BASTA SER MUITO DELICADO E USAR CÔCO E OLHOS MEIGOS! BASTA SER JUDAS! BASTA SER DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS NASCEU PARA PROVAR QUE, NEM TODOS OS QUE ESCREVEM SABEM ESCREVER!
O DANTAS É UM AUTOMATO QUE DEITA PR'A FÓRA O QUE A GENTE JÁ SABE QUE VAE SAHIR... MAS É PRECISO DEITAR DINHEIRO!
O DANTAS É UM SONETO D'ELLE-PRÓPRIO!
O DANTAS EM GÉNIO NUNCA CHEGA A PÓLVORA SECCA E EM TALENTO É PIM-PAM-PUM!
O DANTAS NÚ É HORROROSO!
O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCA!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS É O ESCARNEO DA CONSCIÊNCIA!
SE O DANTAS É PORTUGUEZ EU QUERO SER HESPANHOL!
O DANTAS É A VERGONHA DA INTELLECTUALIDADE PORTUGUEZA! O DANTAS É A META DA DECADÊNCIA MENTAL!
E AINDA HÁ QUEM NÃO CÓRE QUANDO DIZ ADMIRAR O DANTAS!
E AINDA HÁ QUEM LHE ESTENDA A MÃO!
E QUEM LHE LAVE A ROUPA!
E QUEM TENHA DÓ DO DANTAS!
E AINDA HÁ QUEM DUVIDE DE QUE O DANTAS NÃO VALE NADA, E QUE NÃO SABE NADA, E QUE NEM É INTELLIGENTE NEM DECENTE, NEM ZERO!
VOCÊS NÃO SABEM QUEM É A SOROR MARIANNA DO DANTAS? EU VOU-LHES CONTAR:
A PRINCÍPIO, POR CARTAZES, ENTREVISTAS E OUTRAS PREPARAÇÕES COM AS QUAES NADA TEMOS QUE VÊR, PENSEI TRATAR-SE DE SORÔR MARIANNA ALCOFORADO A PSEUDO AUCTORA D'AQUELLAS CARTAS FRANCEZAS QUE DOIS ILLUSTRES SENHORES D'ESTA TERRA NÃO DESCANÇARAM ENQUANTO NÃO ESTRAGARAM P'RA PORTUGUEZ, QUANDO SUBIU O PANNO TAMBÉM NÃO FUI CAPAZ DE DISTINGUIR PORQUE ERA NOITE MUITO ESCURA E SÓ DEPOIS DE MEIO ACTO É QUE DESCOBRI QUE ERA DE MADRUGADA PORQUE O BISPO DE BEJA DISSE QUE TINHA ESTADO À ESPERA DO NASCER DO SOL!
A MARIANNA VEM DESCENDO UMA ESCADA ESTREITÍSSIMA MAS NÃO VEM SÓ. TRAZ TAMBÉM O CHAMILLY QUE EU NÃO CHEGUEI A VER, OUVINDO APENAS UMA VOZ MUITO CONHECIDA AQUI NA BRAZILEIRA DO CHIADO. POUCO DEPOIS O BISPO DE BEJA É QUE ME DISSE QUE ELLE TRAZIA CALÇÕES VERMELHOS. A MARIANNA E O CHAMILLY ESTÃO SÒZINHOS EM SCENA, E ÀS ESCURAS DANDO A ENTENDER PERFEITAMENTE QUE FIZERAM INDECÊNCIAS NO QUARTO. DEPOIS O CHAMILLY, COMPLETAMENTE SATISFEITO DESPEDE-SE E SALTA P'LA JANELLA COM GRANDE MAGUA DA FREIRA LACRIMOSA. E ANDA HOJE OS TURISTES TEEM OCCASIÃO DE OBSERVAR AS GRADES ARROMBADAS DA JANELLA DO QUINTO ANDAR DO CONVENTO DA CONCEIÇÃO DE BEJA NA RUA DO TOURO, POR ONDE SE DIZ QUE FUGIU O CÉLEBRE CAPITÃO DE CAVALOS EM PARIS E DENTISTA EM LISBOA.
A MARIANNA QUE É HISTÉRICA COMEÇA DE CHORAR DESATINADAMENTE NOS BRAÇOS DA SUA CONFDENTE E EXCELLENTE PAU DE CABELEIRA SORÔR IGNEZ.
VEEM DESCENDO P'LA DITA ESTREITÍSSIMA ESCALA (sic), VARIAS MARIANNAS TODAS EGUAES E DE CANDEIAS ACESAS, MENOS UMA QUE USA ÓCULOS E BENGALLA E AINDA (sic) TODA CURVADA P'RÁ FRENTE O QUE QUER DIZER QUE É ABBADESSA.
E SERIA ATÉ UMA EXCELENTE PERSONIFICAÇÃO DAS BRUXAS DE GOYA SE QUANDO FALLASSE NÃO TIVESSE AQUELLA VOZ TÃO FRESCA E MAVIOSA DA TIA FELICIDADE DA VIZINHA DO LADO, E REPARANDO NOS DOIS VULTOS INTERROGA ESPAÇADAMENTE COM CADÊNCIA, AUSTERIDADE E IMMENSA FALTA DE CORDA...
QUEM ESTÁ AHI?... E DE CANDEIAS APAGADAS?
- FOI O VENTO, DIZEM AS POBRES INNOCENTES VARADAS DE TERROR... E A ABADESSA QUE SÓ É VELHA NOS ÓCULOS, NA BENGALA E EM ANDAR CURVADA P'RÁ FRENTE MANDA TOCAR A SINETA QUE É UM DÓ D'ALMA O OUVI-LA ASSIM TÃO DEBILITADA, VÃO TODAS P'RÓ CÔRO, MAS EIS QUE, DE REPENTE BATEM NO PORTÃO E SEM SE ANNUNCIAR NEM LIMPAR-SE DA POEIRA, SOBE A ESCADA E ENTRA P'LO SALÃO UM BISPO DE BEJA QUE QUANDO ERA NOVO FEZ BRÉGEIRICES CO'A MENINA DO CHOCOLATE.
AGORA COMPLETAMENTE EMENDADO REVELA À ABBADESSA QUE SABE POR CARTAS QUE HÁ HOMENS QUE VÃO ÀS MULHERES DO CONVENTO E QUE AINDA HÁ POUCO VIRA UM DE CAVALLOS A SALTAR P'LA JANELLA. A ABADESSA DIZ QUE EFFECTIVAMENTE JÁ HÁ TEMPOS QUE VINHA DANDO P'LA FALTA DE GALLINHAS E TÃO INNOCENTINHA, COITADA, QUE N'AQUELLES OITENTA ANNOS AINDA NÃO TEVE TEMPO P'RA DESCOBRIR A RAZÃO DA HUMANIDADE ESTAR DIVIDIDA EM HOMENS E MULHERES.
DEPOIS DE SÉRIOS EMBARAÇOS DO BISPO É QUE ELLA DEU COM O ATREVIMENTO E MANDOU CHAMAR AS DUAS FREIRAS DE HÁ POUCO CO'AS CANDEIAS APAGADAS. N'ESTA ALTURA ESTA PEÇA POLICIAL TOMA UM PEDAÇO D'INTERESSE PORQUE O BISPO ORA PARECE UM POLÍCIA DE INVESTIGAÇÃO DISFARÇADO EM BISPO, ORA UM BISPO COM A FALTA DE DELICADEZA DE UM POLÍCIA D'INVESTIGAÇÃO, E TÃO PERSPICAZ QUE DESCOBRE EM MENOS DE MEIO MINUTO O QUE O PÚBLICO JÁ ESTÁ FARTO DE SABER - QUE A MARIANNA DORMIU CO'O NOEL. O PEOR É QUE A MARIANNA FOI À SERRA CO'AS INDISCREÇÕES DO BISPO E DESATA A BERRAR, A BERRAR COMO QUEM SE ESTAVA MARIMBANDO P'RA TUDO AQUILLO. ESTEVE MESMO MUITO PERTO DE
SE ESTRElAR COM UM PAR DE MURROS NA CORÔA DO BISPO NO QUE (SE) MOSTROU DE UM ATREVIMENTO, DE UMA INSOLÊNCIA E DE UMA DECISÃO REFILONA QUE EXCEDEU TODAS AS EXPECTATIVAS.
OUVE-SE UMA CORNETA A TOCAR UMA MARCHA DE CLARINS E MARIANNA SENTINDO NAS PATAS DOS CAVALLOS TODA A ALMA DO SEU PREFERIDO FOI QUAL PARDALITO ENGAIOLADO A CORRER ATÉ ÀS GRADES DA JANELLA A GRITAR DESALMADAMENTE P'LO SEU NOEL. GRITA, ASSOBIA E REDOPIA E PIA E RASGA-SE E MAGÓA-SE E CAE DE COSTAS COM UM ACCIDENTE, DO QUE JÁ PREVIAMENTE TINHA AVISADO O PÚBLICO E O PANNO TAMBÉM CAE E O ESPECTADOR TAMBÉM CAE DA PACIÊNCIA ABAIXO E DESATA N'UMA DESTAS PATEADAS TÃO ENORMES E TÃO MONUMENTAES QUE TODOS OS JORNAES DE LISBOA NO DIA SEGUINTE FORAM UNÂNIMES N'AQUELLE ÊXITO TEATRAL DO DANTAS.
A ÚNICA CONSOLAÇÃO QUE OS ESPECTADORES DECENTES TIVERAM FOI A CERTEZA DE QUE AQUILLO NÃO ERA A SORÔR ALCOFORADO MAS SIM UMA MERDARIANNA ALDANTASCUFURADO QUE TINHA CHELIQUES E EXAGEROS SEXUAES.
CONTINUE O SENHOR DANTAS A ESCREVER ASSIM QUE HÁ-DE GANHAR MUITO CO'O ALCUFURADO E HÁ-DE VER, QUE AINDA APANHA UMA ESTÁTUA DE PRATA POR UM OURIVES DO PORTO, E UMA EXPOSIÇÃO DAS MAQUETES P'RÓ SEU MONUMENTO ERECTO POR SUBSCRIÇAO NACIONAL DO SÉCULO A FAVOR DOS FERIDOS DA GUERRA, E A PRAÇA DE CAMÕES MUDADA EM PRAÇA DO DR. JULIO DANTAS, E COM FESTAS DA CIDADE P'LOS ANNIVERSÁRIOS, E SABONETES EM CONTA «JULIO DANTAS» E PASTAS DANTAS P'RÓS DENTES, E GRAXA DANTAS P'RÁS BOTAS, E NIVEINA DANTAS, E COMPRIMIDOS DANTAS E AUTOCLISMOS
DANTAS E DANTAS, DANTAS, DANTAS, DANTAS... E LIMONADAS DANTAS - MAGNESIA.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE UM DIA HOUVER JUSTIÇA EM PORTUGAL TODO O MUNDO SABERÁ QUE O AUTOR DOS LUZÍADAS É O DANTAS QUE N'UM RASGO MEMORÁVEL DE MODÉSTIA SÓ CONSENTIU A GLÓRIA DO SEU PSEUDÓNIMO CAMÕES.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE TODOS FÔSSEM COMO EU, HAVERIA TAES MUNIÇÕES DE MANGUITOS QUE LEVARIAM DOIS SÉCULOS A GASTAR.
MAS JUYGAES QUE N'ISTO SE RESUME A LITTERATURA PORTUGUEZA? NÃÓ! MIL VEZES NÃO!
TEMOS, ALÉM D'ISTO O CHIANCA QUE JÁ FEZ RIMAS P'RA ALUBARROTA QUE DEIXOU DE SER A DERROTA DOS CASTELHANOS P'RA SER A DERROTA DO CHIANCA.
E AS PINOQUICES DE VASCO MENDONÇA ALVES PASSADAS NO TEMPO DA AVÔSINHA! E AS INFELICIDADES DE RAMADA CURTO! E O TALENTO INSÓLITO DE URBANO RODRIGUES! E AS GAITADAS DO BRUN! E AS TRADUCÇÕES SÓ P'RA HOMEM (D) O ILLUSTRÍSSIMO EXCELENTÍSSIMO SENHOR MELLO BARRETO! E O FREI MATTA NUNES MÔXO! E A IGNEZ SYPHILITICA DO FAUSTINO! E AS IMBECILIDADES DO SOUSA COSTA! E MAIS PEDANTICES DO DANTAS! E ALBERTO SOUSA, O DANTAS DO DESENHO! E OS JORNALISTAS DO SECULO E DA CAPITAL E DO NOTICIAS E DO PAIZ E DO DIA E DA NAÇÃO E DA REPUBUCA E DA LUCTA E DE TODOS, TODOS OS JORNAES! E OS ACTORES DE TODOS OS THEATROS! E TODOS OS PINTORES DAS BELLAS ARTES E TODOS OS ARTISTAS DE PORTUGAL QUE EU NÃO GOSTO. E OS DA AGUIA DO PORTO E OS PALERMAS DE COIMBRA! E A ESTUPIDEZ DO OLDEMIRO CESAR E O DOUTOR JOSÉ DE FIGUEIREDO AMANTE DO MUSEU E AH OH OS SOUSA PINTO HU HI E OS BURROS DE CACILHAS E OS MENÚS DO ALFREDO GUISADO! E (O) RACHITICO ALBINO FORJAZ SAMPAIO, CRITICO DA LUCTA A QUEM O FIALHO COM IMMENSA PIADA INTRUJOU DE QUE TINHA TALENTO! E TODOS OS QUE SÃO POLITICOS E ARTISTAS! E AS EXPOSIÇÕES ANNUAES DAS BELLAS ARTE(S)! E TODAS AS MAQUETAS DO MARQUEZ DE POMBAL! E AS DE CAMÕES EM PARIS! E OS VAZ, OS ESTRELLA, OS LACERDA, OS LUCENA, OS ROSA, OS COSTA, OS ALMEIDA, OS CAMACHO, OS CUNHA, OS CARNEIRO, OS BARROS, OS SILVA, OS GOMES, OS VELHOS, OS IDIOTAS, OS ARRANJISTAS, OS IMPOTENTES, OS SCELERADOS, OS VENDIDOS, OS IMBECIS, OS PÁRIAS, OS ASCETAS, OS LOPES, OS PEIXOTOS, OS MOTTA, OS GODINHO, OS TEIXEIRA, OS DIABO QUE OS LEVE, OS CONSTANTINO, OS GRAVE, OS MANTUA, OS BAHIA, OS MENDONÇA, OS BRAZÃO, OS MATTOS, OS ALVES, OS ALBUQUERQUE, OS SOUSAS E TODOS OS DANTAS QUE HOUVER POR AHI!!!!!!
E AS CONVICÇÕES URGENTES DO HOMEM CHRISTO PAE E AS CONVICÇÕES CATITAS DO HOMEM CHRISTO FILHO!
E OS CONCERTOS DO BLANCH! E AS ESTATUAS AO LEME, AO EÇA E AO DESPERTAR E A TUDO! E TUDO O QUE SEJA ARTE EM PORTUGAL! E TUDO! TUDO POR CAUSA DO DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
PORTUGAL QUE COM TODOS ESTES SENHORES, CONSEGUIU A CLASSIFICAÇÃO DO PAIZ MAIS ATRAZADO DA EUROPA E DE TODO OMUNDO! O PAIZ MAIS SELVAGEM DE TODAS AS ÁFRICAS! O EXILIO DOS DEGRADADOS E DOS INDIFERENTES! A AFRICA RECLUSA DOS EUROPEUS! O ENTULHO DAS DESVANTAGENS E DOS SOBEJOS! PORTUGAL INTEIRO HA-DE ABRIR OS OLHOS UM DIA - SE É QUE A SUA CEGUEIRA NÃO É INCURÁVEL E ENTÃO GRITARÁ COMMIGO, A MEU LADO, A NECESSIDADE QUE PORTUGAL TEM DE SER QUALQUER COISA DE ASSEIADO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
José de Almada-Negreiros
POETA D'ORPHEU
FUTURISTA
e
TUDO
Por uma nova geração da escrita a nu,
IR - "Anti-Dantas"
Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, todo grafado em maiúsculas e utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia - PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava: "Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi". Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar.
Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio.
MANIFESTO ANTI-DANTAS E POR EXTENSO
por José de Almada-Negreiros
POETA D'ORPHEU FUTURISTA e TUDO
BASTA PUM BASTA!
UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D'INDIGENTES, D'INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO!
ABAIXO A GERAÇÃO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS A CAVALO É UM BURRO IMPOTENTE!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS À PROA É UMA CANÔA UNI SECO!
O DANTAS É UM CIGANO!
O DANTAS É MEIO CIGANO!
O DANTAS SABERÁ GRAMMÁTICA, SABERÁ SYNTAXE, SABERÁ MEDICINA, SABERÁ FAZER CEIAS P'RA CARDEAIS SABERÁ TUDO MENOS ESCREVER QUE É A ÚNICA COISA QUE ELLLE FAZ!
O DANTAS PESCA TANTO DE POESIA QUE ATÉ FAZ SONETOS COM LIGAS DE DUQUEZAS!
O DANTAS É UM HABILIDOSO!
O DANTAS VESTE-SE MAL!
O DANTAS USA CEROULAS DE MALHA!
O DANTAS ESPECÚLA E INÓCULA OS CONCUBINOS!
O DANTAS É DANTAS!
O DANTAS É JÚLIO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS FEZ UMA SORÔR MARIANNA QUE TANTO O PODIA SER COMO A SORÔR IGNEZ OU A IGNEZ DE CASTRO, OU A LEONOR TELLES, OU O MESTRE D'AVIZ, OU A DONA CONSTANÇA, OU A NAU CATHRINETA, OU A MARIA RAPAZ!
E O DANTAS TEVE CLÁQUE! E O DANTAS TEVE PALMAS! E O DANTAS AGRADECEU!
O DANTAS É UM CIGANÃO!
NÃO É PRECISO IR P'RÓ ROCIO P'RA SE SER UM PANTOMINEIRO, BASTA SER-SE PANTOMINEIRO!
NÃO É PRECISO DISFARÇAR-SE P'RA SE SER SALTEADOR, BASTA ESCREVER COMO DANTAS! BASTA NÃO TER ESCRÚPULOS NEM MORAES, NEM ARTÍSTICOS, NEM HUMANOS! BASTA ANDAR CO'AS MODAS, CO'AS POLÍTICAS E CO'AS OPINIÕES! BASTA USAR O TAL SORRISINHO, BASTA SER MUITO DELICADO E USAR CÔCO E OLHOS MEIGOS! BASTA SER JUDAS! BASTA SER DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS NASCEU PARA PROVAR QUE, NEM TODOS OS QUE ESCREVEM SABEM ESCREVER!
O DANTAS É UM AUTOMATO QUE DEITA PR'A FÓRA O QUE A GENTE JÁ SABE QUE VAE SAHIR... MAS É PRECISO DEITAR DINHEIRO!
O DANTAS É UM SONETO D'ELLE-PRÓPRIO!
O DANTAS EM GÉNIO NUNCA CHEGA A PÓLVORA SECCA E EM TALENTO É PIM-PAM-PUM!
O DANTAS NÚ É HORROROSO!
O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCA!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
O DANTAS É O ESCARNEO DA CONSCIÊNCIA!
SE O DANTAS É PORTUGUEZ EU QUERO SER HESPANHOL!
O DANTAS É A VERGONHA DA INTELLECTUALIDADE PORTUGUEZA! O DANTAS É A META DA DECADÊNCIA MENTAL!
E AINDA HÁ QUEM NÃO CÓRE QUANDO DIZ ADMIRAR O DANTAS!
E AINDA HÁ QUEM LHE ESTENDA A MÃO!
E QUEM LHE LAVE A ROUPA!
E QUEM TENHA DÓ DO DANTAS!
E AINDA HÁ QUEM DUVIDE DE QUE O DANTAS NÃO VALE NADA, E QUE NÃO SABE NADA, E QUE NEM É INTELLIGENTE NEM DECENTE, NEM ZERO!
VOCÊS NÃO SABEM QUEM É A SOROR MARIANNA DO DANTAS? EU VOU-LHES CONTAR:
A PRINCÍPIO, POR CARTAZES, ENTREVISTAS E OUTRAS PREPARAÇÕES COM AS QUAES NADA TEMOS QUE VÊR, PENSEI TRATAR-SE DE SORÔR MARIANNA ALCOFORADO A PSEUDO AUCTORA D'AQUELLAS CARTAS FRANCEZAS QUE DOIS ILLUSTRES SENHORES D'ESTA TERRA NÃO DESCANÇARAM ENQUANTO NÃO ESTRAGARAM P'RA PORTUGUEZ, QUANDO SUBIU O PANNO TAMBÉM NÃO FUI CAPAZ DE DISTINGUIR PORQUE ERA NOITE MUITO ESCURA E SÓ DEPOIS DE MEIO ACTO É QUE DESCOBRI QUE ERA DE MADRUGADA PORQUE O BISPO DE BEJA DISSE QUE TINHA ESTADO À ESPERA DO NASCER DO SOL!
A MARIANNA VEM DESCENDO UMA ESCADA ESTREITÍSSIMA MAS NÃO VEM SÓ. TRAZ TAMBÉM O CHAMILLY QUE EU NÃO CHEGUEI A VER, OUVINDO APENAS UMA VOZ MUITO CONHECIDA AQUI NA BRAZILEIRA DO CHIADO. POUCO DEPOIS O BISPO DE BEJA É QUE ME DISSE QUE ELLE TRAZIA CALÇÕES VERMELHOS. A MARIANNA E O CHAMILLY ESTÃO SÒZINHOS EM SCENA, E ÀS ESCURAS DANDO A ENTENDER PERFEITAMENTE QUE FIZERAM INDECÊNCIAS NO QUARTO. DEPOIS O CHAMILLY, COMPLETAMENTE SATISFEITO DESPEDE-SE E SALTA P'LA JANELLA COM GRANDE MAGUA DA FREIRA LACRIMOSA. E ANDA HOJE OS TURISTES TEEM OCCASIÃO DE OBSERVAR AS GRADES ARROMBADAS DA JANELLA DO QUINTO ANDAR DO CONVENTO DA CONCEIÇÃO DE BEJA NA RUA DO TOURO, POR ONDE SE DIZ QUE FUGIU O CÉLEBRE CAPITÃO DE CAVALOS EM PARIS E DENTISTA EM LISBOA.
A MARIANNA QUE É HISTÉRICA COMEÇA DE CHORAR DESATINADAMENTE NOS BRAÇOS DA SUA CONFDENTE E EXCELLENTE PAU DE CABELEIRA SORÔR IGNEZ.
VEEM DESCENDO P'LA DITA ESTREITÍSSIMA ESCALA (sic), VARIAS MARIANNAS TODAS EGUAES E DE CANDEIAS ACESAS, MENOS UMA QUE USA ÓCULOS E BENGALLA E AINDA (sic) TODA CURVADA P'RÁ FRENTE O QUE QUER DIZER QUE É ABBADESSA.
E SERIA ATÉ UMA EXCELENTE PERSONIFICAÇÃO DAS BRUXAS DE GOYA SE QUANDO FALLASSE NÃO TIVESSE AQUELLA VOZ TÃO FRESCA E MAVIOSA DA TIA FELICIDADE DA VIZINHA DO LADO, E REPARANDO NOS DOIS VULTOS INTERROGA ESPAÇADAMENTE COM CADÊNCIA, AUSTERIDADE E IMMENSA FALTA DE CORDA...
QUEM ESTÁ AHI?... E DE CANDEIAS APAGADAS?
- FOI O VENTO, DIZEM AS POBRES INNOCENTES VARADAS DE TERROR... E A ABADESSA QUE SÓ É VELHA NOS ÓCULOS, NA BENGALA E EM ANDAR CURVADA P'RÁ FRENTE MANDA TOCAR A SINETA QUE É UM DÓ D'ALMA O OUVI-LA ASSIM TÃO DEBILITADA, VÃO TODAS P'RÓ CÔRO, MAS EIS QUE, DE REPENTE BATEM NO PORTÃO E SEM SE ANNUNCIAR NEM LIMPAR-SE DA POEIRA, SOBE A ESCADA E ENTRA P'LO SALÃO UM BISPO DE BEJA QUE QUANDO ERA NOVO FEZ BRÉGEIRICES CO'A MENINA DO CHOCOLATE.
AGORA COMPLETAMENTE EMENDADO REVELA À ABBADESSA QUE SABE POR CARTAS QUE HÁ HOMENS QUE VÃO ÀS MULHERES DO CONVENTO E QUE AINDA HÁ POUCO VIRA UM DE CAVALLOS A SALTAR P'LA JANELLA. A ABADESSA DIZ QUE EFFECTIVAMENTE JÁ HÁ TEMPOS QUE VINHA DANDO P'LA FALTA DE GALLINHAS E TÃO INNOCENTINHA, COITADA, QUE N'AQUELLES OITENTA ANNOS AINDA NÃO TEVE TEMPO P'RA DESCOBRIR A RAZÃO DA HUMANIDADE ESTAR DIVIDIDA EM HOMENS E MULHERES.
DEPOIS DE SÉRIOS EMBARAÇOS DO BISPO É QUE ELLA DEU COM O ATREVIMENTO E MANDOU CHAMAR AS DUAS FREIRAS DE HÁ POUCO CO'AS CANDEIAS APAGADAS. N'ESTA ALTURA ESTA PEÇA POLICIAL TOMA UM PEDAÇO D'INTERESSE PORQUE O BISPO ORA PARECE UM POLÍCIA DE INVESTIGAÇÃO DISFARÇADO EM BISPO, ORA UM BISPO COM A FALTA DE DELICADEZA DE UM POLÍCIA D'INVESTIGAÇÃO, E TÃO PERSPICAZ QUE DESCOBRE EM MENOS DE MEIO MINUTO O QUE O PÚBLICO JÁ ESTÁ FARTO DE SABER - QUE A MARIANNA DORMIU CO'O NOEL. O PEOR É QUE A MARIANNA FOI À SERRA CO'AS INDISCREÇÕES DO BISPO E DESATA A BERRAR, A BERRAR COMO QUEM SE ESTAVA MARIMBANDO P'RA TUDO AQUILLO. ESTEVE MESMO MUITO PERTO DE
SE ESTRElAR COM UM PAR DE MURROS NA CORÔA DO BISPO NO QUE (SE) MOSTROU DE UM ATREVIMENTO, DE UMA INSOLÊNCIA E DE UMA DECISÃO REFILONA QUE EXCEDEU TODAS AS EXPECTATIVAS.
OUVE-SE UMA CORNETA A TOCAR UMA MARCHA DE CLARINS E MARIANNA SENTINDO NAS PATAS DOS CAVALLOS TODA A ALMA DO SEU PREFERIDO FOI QUAL PARDALITO ENGAIOLADO A CORRER ATÉ ÀS GRADES DA JANELLA A GRITAR DESALMADAMENTE P'LO SEU NOEL. GRITA, ASSOBIA E REDOPIA E PIA E RASGA-SE E MAGÓA-SE E CAE DE COSTAS COM UM ACCIDENTE, DO QUE JÁ PREVIAMENTE TINHA AVISADO O PÚBLICO E O PANNO TAMBÉM CAE E O ESPECTADOR TAMBÉM CAE DA PACIÊNCIA ABAIXO E DESATA N'UMA DESTAS PATEADAS TÃO ENORMES E TÃO MONUMENTAES QUE TODOS OS JORNAES DE LISBOA NO DIA SEGUINTE FORAM UNÂNIMES N'AQUELLE ÊXITO TEATRAL DO DANTAS.
A ÚNICA CONSOLAÇÃO QUE OS ESPECTADORES DECENTES TIVERAM FOI A CERTEZA DE QUE AQUILLO NÃO ERA A SORÔR ALCOFORADO MAS SIM UMA MERDARIANNA ALDANTASCUFURADO QUE TINHA CHELIQUES E EXAGEROS SEXUAES.
CONTINUE O SENHOR DANTAS A ESCREVER ASSIM QUE HÁ-DE GANHAR MUITO CO'O ALCUFURADO E HÁ-DE VER, QUE AINDA APANHA UMA ESTÁTUA DE PRATA POR UM OURIVES DO PORTO, E UMA EXPOSIÇÃO DAS MAQUETES P'RÓ SEU MONUMENTO ERECTO POR SUBSCRIÇAO NACIONAL DO SÉCULO A FAVOR DOS FERIDOS DA GUERRA, E A PRAÇA DE CAMÕES MUDADA EM PRAÇA DO DR. JULIO DANTAS, E COM FESTAS DA CIDADE P'LOS ANNIVERSÁRIOS, E SABONETES EM CONTA «JULIO DANTAS» E PASTAS DANTAS P'RÓS DENTES, E GRAXA DANTAS P'RÁS BOTAS, E NIVEINA DANTAS, E COMPRIMIDOS DANTAS E AUTOCLISMOS
DANTAS E DANTAS, DANTAS, DANTAS, DANTAS... E LIMONADAS DANTAS - MAGNESIA.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE UM DIA HOUVER JUSTIÇA EM PORTUGAL TODO O MUNDO SABERÁ QUE O AUTOR DOS LUZÍADAS É O DANTAS QUE N'UM RASGO MEMORÁVEL DE MODÉSTIA SÓ CONSENTIU A GLÓRIA DO SEU PSEUDÓNIMO CAMÕES.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE TODOS FÔSSEM COMO EU, HAVERIA TAES MUNIÇÕES DE MANGUITOS QUE LEVARIAM DOIS SÉCULOS A GASTAR.
MAS JUYGAES QUE N'ISTO SE RESUME A LITTERATURA PORTUGUEZA? NÃÓ! MIL VEZES NÃO!
TEMOS, ALÉM D'ISTO O CHIANCA QUE JÁ FEZ RIMAS P'RA ALUBARROTA QUE DEIXOU DE SER A DERROTA DOS CASTELHANOS P'RA SER A DERROTA DO CHIANCA.
E AS PINOQUICES DE VASCO MENDONÇA ALVES PASSADAS NO TEMPO DA AVÔSINHA! E AS INFELICIDADES DE RAMADA CURTO! E O TALENTO INSÓLITO DE URBANO RODRIGUES! E AS GAITADAS DO BRUN! E AS TRADUCÇÕES SÓ P'RA HOMEM (D) O ILLUSTRÍSSIMO EXCELENTÍSSIMO SENHOR MELLO BARRETO! E O FREI MATTA NUNES MÔXO! E A IGNEZ SYPHILITICA DO FAUSTINO! E AS IMBECILIDADES DO SOUSA COSTA! E MAIS PEDANTICES DO DANTAS! E ALBERTO SOUSA, O DANTAS DO DESENHO! E OS JORNALISTAS DO SECULO E DA CAPITAL E DO NOTICIAS E DO PAIZ E DO DIA E DA NAÇÃO E DA REPUBUCA E DA LUCTA E DE TODOS, TODOS OS JORNAES! E OS ACTORES DE TODOS OS THEATROS! E TODOS OS PINTORES DAS BELLAS ARTES E TODOS OS ARTISTAS DE PORTUGAL QUE EU NÃO GOSTO. E OS DA AGUIA DO PORTO E OS PALERMAS DE COIMBRA! E A ESTUPIDEZ DO OLDEMIRO CESAR E O DOUTOR JOSÉ DE FIGUEIREDO AMANTE DO MUSEU E AH OH OS SOUSA PINTO HU HI E OS BURROS DE CACILHAS E OS MENÚS DO ALFREDO GUISADO! E (O) RACHITICO ALBINO FORJAZ SAMPAIO, CRITICO DA LUCTA A QUEM O FIALHO COM IMMENSA PIADA INTRUJOU DE QUE TINHA TALENTO! E TODOS OS QUE SÃO POLITICOS E ARTISTAS! E AS EXPOSIÇÕES ANNUAES DAS BELLAS ARTE(S)! E TODAS AS MAQUETAS DO MARQUEZ DE POMBAL! E AS DE CAMÕES EM PARIS! E OS VAZ, OS ESTRELLA, OS LACERDA, OS LUCENA, OS ROSA, OS COSTA, OS ALMEIDA, OS CAMACHO, OS CUNHA, OS CARNEIRO, OS BARROS, OS SILVA, OS GOMES, OS VELHOS, OS IDIOTAS, OS ARRANJISTAS, OS IMPOTENTES, OS SCELERADOS, OS VENDIDOS, OS IMBECIS, OS PÁRIAS, OS ASCETAS, OS LOPES, OS PEIXOTOS, OS MOTTA, OS GODINHO, OS TEIXEIRA, OS DIABO QUE OS LEVE, OS CONSTANTINO, OS GRAVE, OS MANTUA, OS BAHIA, OS MENDONÇA, OS BRAZÃO, OS MATTOS, OS ALVES, OS ALBUQUERQUE, OS SOUSAS E TODOS OS DANTAS QUE HOUVER POR AHI!!!!!!
E AS CONVICÇÕES URGENTES DO HOMEM CHRISTO PAE E AS CONVICÇÕES CATITAS DO HOMEM CHRISTO FILHO!
E OS CONCERTOS DO BLANCH! E AS ESTATUAS AO LEME, AO EÇA E AO DESPERTAR E A TUDO! E TUDO O QUE SEJA ARTE EM PORTUGAL! E TUDO! TUDO POR CAUSA DO DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
PORTUGAL QUE COM TODOS ESTES SENHORES, CONSEGUIU A CLASSIFICAÇÃO DO PAIZ MAIS ATRAZADO DA EUROPA E DE TODO OMUNDO! O PAIZ MAIS SELVAGEM DE TODAS AS ÁFRICAS! O EXILIO DOS DEGRADADOS E DOS INDIFERENTES! A AFRICA RECLUSA DOS EUROPEUS! O ENTULHO DAS DESVANTAGENS E DOS SOBEJOS! PORTUGAL INTEIRO HA-DE ABRIR OS OLHOS UM DIA - SE É QUE A SUA CEGUEIRA NÃO É INCURÁVEL E ENTÃO GRITARÁ COMMIGO, A MEU LADO, A NECESSIDADE QUE PORTUGAL TEM DE SER QUALQUER COISA DE ASSEIADO!
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
José de Almada-Negreiros
POETA D'ORPHEU
FUTURISTA
e
TUDO
Por uma nova geração da escrita a nu,
IR - "Anti-Dantas"
Fernando Dacosta "Almada e Dantas a Nu", Público Magazine, 4/4/93 (adapt.)
ALMADA E DANTAS A NU
O "Manifesto Anti-Dantas e por Extenso", escrito por Almada em 1915, foi uma pedrada no charco da vida literária e social da época. Hoje, à distância de décadas, o choque entre ambos assume novos contornos e permite outras leituras.
O primeiro acto que chamou as atenções do público para José Almada Negreiros, um jovem em começo de carreira no ano de 1915, não foi de natureza cultural, mas social, não teve intenções criativas, mas destrutivas. Tratou-se do lançamento de um manifesto de várias páginas e vários insultos dirigido contra o, então, expoente máximo das letras portuguesas: Júlio Dantas.
Com irreverências nunca vistas, Almada achincalha-o (e ao que ele representa) gravemente, abrindo espaço para si e para a sua geração, a do "Orpheu", que Dantas apelidara de "paranóica".
Fulminado de espanto, por indignação uma parte, por regozijo outra, o país divide-se, radicaliza-se. Almada passa a ter nome. E pressa.
Decide jogar cada vez mais forte. Não tem a paciência, a intemporalidade de Pessoa. Quer o presente e quere-o sem medida, sem espera.
Sabe que a maneira mais fácil, mais rápida, de se ganhar evidência nos círculos culturais é utilizar a violência, o escândalo, o terrorismo contra os, neles, famosos.
Júlio Dantas - poeta, dramaturgo, cronista, jornalista, conferencista, médico, deputado, militar, ministro, glória das instituições, da política, da literatura, do teatro, da sociedade da época, académico de dezenas de academias, referência para o Prémio Nobel e para a Presidência da República - era-lhe uma tentação; até porque não iria reagir, não iria contra-atacar. As figuras proeminentes encontram-se, em situações dessas, muito expostas, quase indefesas.
"Morra o Dantas, morra! Pim! O Dantas é o escárneo da consciência! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portugueza!
O Dantas é a meta da decadência mental! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas! E ainda há quem lhe estenda a mão! E quem tenha dó do Dantas! Morra o Dantas! Morra! Pim!", grita Almada.
Dantas sofre a afronta em silêncio. "Não posso falar, eu próprio fiz coisas dessas na minha juventude", confidencia. E lembra, lembra-nos por ele Luís de Oliveira Guimarães, que para se vingar do crítico Fernandes Costa, general e académico, escreve o "Auto da Rainha Cláudia", em que o põe em intimidades no quarto com a amante, a escritora Cláudia de Campos.
Almada multiplica-se em provocações. Espera Dantas à porta de casa -residia na Rua Ivens (habitou em 22 prédios diferentes)- e, quando o vê, põe-se em sentido, faz-lhe um manguito e berra: "As armas, às áármas, às áááááármas!"
Feroz na amizade como na inimizade, Almada defende a murro (fizera-se razoável pugilista) Amadeo de Souza-Cardoso, quando um quadro seu é cuspido pelo público na abertura, em 1916, de uma exposição na Liga Naval. "É mais importante a descoberta da pintura de Amadeo do que a do caminho para a Índia, porque a Índia foi há quatro séculos", invectiva.
O ano seguinte excita Lisboa ao apresentar-se de fato-macaco no Teatro República (S. Luiz) a ler o "Ultimatum às Gerações Futuristas do Século XX"; a seguir actua como bailarino ao lado de Helena Castelo Melhor no bailado de Ruy Coelho "A Princesa dos Sapatos de Ferro".
Afronta convenções e tabus, pelo corpo, pelo vestuário, pela violência, pela bizarria, pela "chantagem" verbal. "Ergo-me pederasta apupado d'imbecis", entoa, "as mulheres portuguesas são a minha impotência!"
Desce o Chiado de cabeça rapada e pintada, à "skinhead". Faz-se fotografar nu por Vitoriano Braga em poses de discóbolo. Ginasta de mérito, introduz o futebol amador entre nós. Faz moda. É a moda.
Apercebendo-se dos riscos que corre, salvaguarda: "Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva".
A partir dos anos 20, conquistada a celebridade (e o temor), muda de comportamento. Vê-se solicitado pelo poder, pelas instituições, pela imprensa, pela igreja. É um sedutor. Jornalistas e jornais ("Século", "Século da Noite", "Diário de Notícias", "Diário de Lisboa", "Diário Popular") estão do seu lado, têm-no do seu lado.
Passa a ser tratado por "Mestre". E como mestre se posiciona. "Dava-se na alegria de fruir a dádiva. Apenas era rigoroso", anotará Natália Correia, "na escolha daqueles a quem se dava. Uma generosidade selectiva, timbre dos grandes espíritos."
Nascido em S. Tomé, Almada dizia-se, no entanto, natural de Lisboa. Amulatado e com apelido de Negreiros, costuma chamar, depreciativamente "pretos" e "ciganos" aos que queria ofender.
"Portugal é um pais de pretos", escrevia. "Dantas é um cigano, um ciganão. Escrevia: "Portugal, uma resultante de todas as raças do mundo, nunca conseguiu vantagem de um cruzamento útil porque as raças belas isolaram-se por completo". É preciso criar a adoração dos músculos", é preciso educar a mulher portugueza na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens". "Fazei a Apotheoze dos Vencedores, seja qual for o sentido, basta que sejam Vencedores. Ajudai a morrer os vencidos". "Portugal não tem ódios e uma raça sem ódios é uma raça desvirilizada".
Dantas ouve-o e entristece. Numa tarde de calor, à porta da Bertrand, está de conversa com Luís de Oliveira Guimarães. Almada desce a rua, pára na sua frente por instantes, tira o chapéu, inclina-se prossegue. Dantas segue-o com o olhar.
"Este Almada, sempre tão velho, coitado!", exclama.
Lidos hoje, os seus manifestos fazem sorrir. São de uma linearidade, de um agressividade enternecedoras. Tantos insultos acabam por voltar-se, pela sua obsessão de chocar, pelo seu delírio de excessos, mais contra quem os desfere do que contra quem os recebe.
Daí que Albino Forjaz Sampaio, perante a afirmação, no anti-Dantas, de que "Dantas nu é horroroso", haja perguntado num "suelto" da "Luta": "E o que é que nós temos a ver com as decepções sexuais do senhor Almada Negreiros?"
Dizer que Dantas, um dos nossos maiores autores, "nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever não passa de pilhéria; dizer que ele "cheira mal da boca" e admirar-se por haver "quem lhe lave a roupa", isto de um homem que, na sua época, é um modelo da elegância, não colhe convencimento.
Dantas veste-se sempre com esmero ("uma pessoa que se sente bem arranjada tem mais confiança em si própria"), gravata, chapéu, água-de-colónia, anel de safira, e comporta-se sempre com afabilidade. "Saber sorrir é saber viver", enfatiza. "Na vida, como no jogo, o primeiro prazer é ganhar, o segundo é perder!".
A um autor desancado pela crítica, que o procura, responde: "Não responda. Não há nada que valha a dignidade do silêncio. Quanto mais você subir mais detestado, mais insultado será. Eduque o seu espírito na lição da serenidade, que tudo vence; da generosidade, que tudo perdoa".
Não é verdade, como se fez crer, que Almada e Dantas não se falassem. Embora a incomodidade se tivesse instalado entre um e outro, num, Almada, por irritação, noutro, Dantas, por mágoa (os ataques do primeiro magoaram-no mais do que ofenderam), cumprimentavam-se quando se viam, interessavam-se pelos trajectos de ambos e tinham amigos comuns.
Quando Salazar escolhe Júlio Dantas para a Exposição do Mundo Português, uma das primeiras pessoas que ele chama para trabalhar é Almada Negreiros. "A luta pela originalidade", dirá, "é uma corrida vertiginosa aos assuntos novos, às imagens novas. E, afinal, há uma maneira fácil de ser original: é ser sincero".
Júlio Dantas nasceu e faleceu no mês de Maio ("uma Primavera o trouxe, uma Primavera o levou", comenta Luís de Oliveira Guimarães). Maios separados por 86 anos de uma vida, de uma obra, de uma postura, de uma perspectiva singularíssimas.
"Entre outros talentos teve o prodígio da versatilidade política. Gostava de estar", evoca-nos António Valdemar, escritor e jornalista, "sempre perto do poder". Para se aproximar do Paço e da Rainha escreve a "Ceia dos Cardeais". Não recebendo os cargos e as honrarias a que julgava ter direito, aproveita-se da crise do regime monárquico e faz "Um Serão nas Laranjeiras", denúncia da decomposição da corte. Mas não se afasta dela.
Aguarda, por exemplo, a chegada da família real de Vila Viçosa, no fatídico dia 1 de Fevereiro de 1908 e oferece a D. Amélia um ramo de flores. O mesmo ramo de flores que ela arremessou, conta Aquilino Ribeiro, à cara do Buiça, quando apontava e disparava a carabina. Proclamada a República, Dantas adere-lhe e publica na "Capital", em folhetins, Cruz de Sangue", reunida depois em livro sob o título "Pátria Portuguesa", uma exaltação do povo e uma condenação da nobreza. Perante o conflito desencadeado com a Igreja pela Lei da Separação de Afonso Costa, redige a peça "A Santa Inquisição", em que condena violentamente o Santo Oficio. Com o advento do salazarismo, dá-nos "Frei António das Chagas" elogio de quem se sacrifica, se imola pela Pátria. O abalo provocado pelo MUNAF pelo MUD, que faz estremecer a posição de Salazar, leva-o a reformular a "Antígona' com que se estreou Mariana Rey Monteiro, uma crítica ao velho ditador através da personagem de Creonte.
Há quem, ironizando, goste de dizer que, se Dantas continuasse vivo, teríamos tido peças sobre o 25 de Abril, o PREC, Mário Soares, Cavaco Silva - a favor e contra.
Almada Negreiros mostrou-se mais transparente. Apoiou o salazarismo e o catolicismo, fez vitrais para a igreja e murais para o regime. Aceitou denegrir figuras da oposição (caso de Norton de Matos) e propagandear grupos do regime (caso da Legião Portuguesa).
Morreu crente, com funeral católico e pompa religiosa. Era amigo de Cerejeira, admirador de Salazar.
Quando este vai à antestreia do "Auto da Alma", no Teatro S. Carlos, com cenários seus e interpretação de Maria Lalande, ambos se precipitam, no final, para o então presidente do Conselho.
- Posso dar-lhe um beijinho?, pergunta a actriz.
Salazar, indiferente:
- Se isso lhe dá prazer...
Ela beija-o.
Almada avança:
- Posso cumprimentar Vossa Excelência?
Salazar fita-o:
- É o senhor Almada?
Almada curva-se respeitosamente:
- Sim, senhor Presidente, sou eu. Tenho muita, muita honra em cumprimentá-lo!
À distância, Vitorino Nemésio cicia para um amigo, que nos conta o episódio:
- O Dantas está vingado!
À pergunta sobre o que pensava de Deus, Dantas respondia sempre: "Como sabem, sou acima de tudo um homem de teatro. Ora Deus para mim é um elemento essencialmente cénico.
Dantas, a quem Augusto de Castro chamava o Quarto Cardeal, em alusão à "Ceia dos Cardeais", que eram três, e aos inúmeros bispos, frades, freiras, abades que povoam as sua obras ("são figuras eminentemente teatrais", repetia), recusa-se a casar religiosamente e exige que o seu funeral seja civil.
"Isso causou uma grande perturbação nos meios católicos, dado o seu prestígio", destaca-nos António Valdemar, presente no funeral. "Para salvar as aparências, Cerejeira pediu ao padre Moreira das Neves que se deslocasse à Academia das Ciências, onde o corpo estava em câmara ardente, e que permanecesse junto da urna, de joelhos, a rezar, sobretudo nas alturas em que a sala tivesse mais gente. Moreira da Neves assim fez".
Vitorino Nemésio, que sucedeu a Júlio Dantas na Academia, fez, ao ocupar-lhe o lugar (a cadeira número 13), a evocação oficial. Com talento, com desassombro, sublinha ("não me cansarei de o elogiar!") a sua alta qualidade literária e a sua invulgar mestria dramatúrgica - que lhe dão lugar cimeiro nas letras portuguesas.
Carlos Malheiro Dias vai mais longe:
"Ninguém como Dantas deu tanta plasticidade, tanta riqueza verbal, tanto ímpeto à nossa língua. Nem o Eça, nem o Fialho".
Hoje, 100 anos volvidos sobre o seu nascimento, Almada Negreiros é, como Júlio Dantas, uma instituição da nossa cultura. Ambos têm as contradições, os excessos, os sonhos, as jactâncias, as perversidades dos excepcionais. Noutras circunstâncias, noutra época, poderiam ter sido talvez cúmplices e assumido posições diferentes - inversas?
Eram demasiado grandes para ficarem alheios um ao outro. Mereceram-se um ao outro.»
IR - "anti-dantas", por uma nova geração da escrita.
O "Manifesto Anti-Dantas e por Extenso", escrito por Almada em 1915, foi uma pedrada no charco da vida literária e social da época. Hoje, à distância de décadas, o choque entre ambos assume novos contornos e permite outras leituras.
O primeiro acto que chamou as atenções do público para José Almada Negreiros, um jovem em começo de carreira no ano de 1915, não foi de natureza cultural, mas social, não teve intenções criativas, mas destrutivas. Tratou-se do lançamento de um manifesto de várias páginas e vários insultos dirigido contra o, então, expoente máximo das letras portuguesas: Júlio Dantas.
Com irreverências nunca vistas, Almada achincalha-o (e ao que ele representa) gravemente, abrindo espaço para si e para a sua geração, a do "Orpheu", que Dantas apelidara de "paranóica".
Fulminado de espanto, por indignação uma parte, por regozijo outra, o país divide-se, radicaliza-se. Almada passa a ter nome. E pressa.
Decide jogar cada vez mais forte. Não tem a paciência, a intemporalidade de Pessoa. Quer o presente e quere-o sem medida, sem espera.
Sabe que a maneira mais fácil, mais rápida, de se ganhar evidência nos círculos culturais é utilizar a violência, o escândalo, o terrorismo contra os, neles, famosos.
Júlio Dantas - poeta, dramaturgo, cronista, jornalista, conferencista, médico, deputado, militar, ministro, glória das instituições, da política, da literatura, do teatro, da sociedade da época, académico de dezenas de academias, referência para o Prémio Nobel e para a Presidência da República - era-lhe uma tentação; até porque não iria reagir, não iria contra-atacar. As figuras proeminentes encontram-se, em situações dessas, muito expostas, quase indefesas.
"Morra o Dantas, morra! Pim! O Dantas é o escárneo da consciência! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portugueza!
O Dantas é a meta da decadência mental! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas! E ainda há quem lhe estenda a mão! E quem tenha dó do Dantas! Morra o Dantas! Morra! Pim!", grita Almada.
Dantas sofre a afronta em silêncio. "Não posso falar, eu próprio fiz coisas dessas na minha juventude", confidencia. E lembra, lembra-nos por ele Luís de Oliveira Guimarães, que para se vingar do crítico Fernandes Costa, general e académico, escreve o "Auto da Rainha Cláudia", em que o põe em intimidades no quarto com a amante, a escritora Cláudia de Campos.
Almada multiplica-se em provocações. Espera Dantas à porta de casa -residia na Rua Ivens (habitou em 22 prédios diferentes)- e, quando o vê, põe-se em sentido, faz-lhe um manguito e berra: "As armas, às áármas, às áááááármas!"
Feroz na amizade como na inimizade, Almada defende a murro (fizera-se razoável pugilista) Amadeo de Souza-Cardoso, quando um quadro seu é cuspido pelo público na abertura, em 1916, de uma exposição na Liga Naval. "É mais importante a descoberta da pintura de Amadeo do que a do caminho para a Índia, porque a Índia foi há quatro séculos", invectiva.
O ano seguinte excita Lisboa ao apresentar-se de fato-macaco no Teatro República (S. Luiz) a ler o "Ultimatum às Gerações Futuristas do Século XX"; a seguir actua como bailarino ao lado de Helena Castelo Melhor no bailado de Ruy Coelho "A Princesa dos Sapatos de Ferro".
Afronta convenções e tabus, pelo corpo, pelo vestuário, pela violência, pela bizarria, pela "chantagem" verbal. "Ergo-me pederasta apupado d'imbecis", entoa, "as mulheres portuguesas são a minha impotência!"
Desce o Chiado de cabeça rapada e pintada, à "skinhead". Faz-se fotografar nu por Vitoriano Braga em poses de discóbolo. Ginasta de mérito, introduz o futebol amador entre nós. Faz moda. É a moda.
Apercebendo-se dos riscos que corre, salvaguarda: "Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva".
A partir dos anos 20, conquistada a celebridade (e o temor), muda de comportamento. Vê-se solicitado pelo poder, pelas instituições, pela imprensa, pela igreja. É um sedutor. Jornalistas e jornais ("Século", "Século da Noite", "Diário de Notícias", "Diário de Lisboa", "Diário Popular") estão do seu lado, têm-no do seu lado.
Passa a ser tratado por "Mestre". E como mestre se posiciona. "Dava-se na alegria de fruir a dádiva. Apenas era rigoroso", anotará Natália Correia, "na escolha daqueles a quem se dava. Uma generosidade selectiva, timbre dos grandes espíritos."
Nascido em S. Tomé, Almada dizia-se, no entanto, natural de Lisboa. Amulatado e com apelido de Negreiros, costuma chamar, depreciativamente "pretos" e "ciganos" aos que queria ofender.
"Portugal é um pais de pretos", escrevia. "Dantas é um cigano, um ciganão. Escrevia: "Portugal, uma resultante de todas as raças do mundo, nunca conseguiu vantagem de um cruzamento útil porque as raças belas isolaram-se por completo". É preciso criar a adoração dos músculos", é preciso educar a mulher portugueza na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens". "Fazei a Apotheoze dos Vencedores, seja qual for o sentido, basta que sejam Vencedores. Ajudai a morrer os vencidos". "Portugal não tem ódios e uma raça sem ódios é uma raça desvirilizada".
Dantas ouve-o e entristece. Numa tarde de calor, à porta da Bertrand, está de conversa com Luís de Oliveira Guimarães. Almada desce a rua, pára na sua frente por instantes, tira o chapéu, inclina-se prossegue. Dantas segue-o com o olhar.
"Este Almada, sempre tão velho, coitado!", exclama.
Lidos hoje, os seus manifestos fazem sorrir. São de uma linearidade, de um agressividade enternecedoras. Tantos insultos acabam por voltar-se, pela sua obsessão de chocar, pelo seu delírio de excessos, mais contra quem os desfere do que contra quem os recebe.
Daí que Albino Forjaz Sampaio, perante a afirmação, no anti-Dantas, de que "Dantas nu é horroroso", haja perguntado num "suelto" da "Luta": "E o que é que nós temos a ver com as decepções sexuais do senhor Almada Negreiros?"
Dizer que Dantas, um dos nossos maiores autores, "nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever não passa de pilhéria; dizer que ele "cheira mal da boca" e admirar-se por haver "quem lhe lave a roupa", isto de um homem que, na sua época, é um modelo da elegância, não colhe convencimento.
Dantas veste-se sempre com esmero ("uma pessoa que se sente bem arranjada tem mais confiança em si própria"), gravata, chapéu, água-de-colónia, anel de safira, e comporta-se sempre com afabilidade. "Saber sorrir é saber viver", enfatiza. "Na vida, como no jogo, o primeiro prazer é ganhar, o segundo é perder!".
A um autor desancado pela crítica, que o procura, responde: "Não responda. Não há nada que valha a dignidade do silêncio. Quanto mais você subir mais detestado, mais insultado será. Eduque o seu espírito na lição da serenidade, que tudo vence; da generosidade, que tudo perdoa".
Não é verdade, como se fez crer, que Almada e Dantas não se falassem. Embora a incomodidade se tivesse instalado entre um e outro, num, Almada, por irritação, noutro, Dantas, por mágoa (os ataques do primeiro magoaram-no mais do que ofenderam), cumprimentavam-se quando se viam, interessavam-se pelos trajectos de ambos e tinham amigos comuns.
Quando Salazar escolhe Júlio Dantas para a Exposição do Mundo Português, uma das primeiras pessoas que ele chama para trabalhar é Almada Negreiros. "A luta pela originalidade", dirá, "é uma corrida vertiginosa aos assuntos novos, às imagens novas. E, afinal, há uma maneira fácil de ser original: é ser sincero".
Júlio Dantas nasceu e faleceu no mês de Maio ("uma Primavera o trouxe, uma Primavera o levou", comenta Luís de Oliveira Guimarães). Maios separados por 86 anos de uma vida, de uma obra, de uma postura, de uma perspectiva singularíssimas.
"Entre outros talentos teve o prodígio da versatilidade política. Gostava de estar", evoca-nos António Valdemar, escritor e jornalista, "sempre perto do poder". Para se aproximar do Paço e da Rainha escreve a "Ceia dos Cardeais". Não recebendo os cargos e as honrarias a que julgava ter direito, aproveita-se da crise do regime monárquico e faz "Um Serão nas Laranjeiras", denúncia da decomposição da corte. Mas não se afasta dela.
Aguarda, por exemplo, a chegada da família real de Vila Viçosa, no fatídico dia 1 de Fevereiro de 1908 e oferece a D. Amélia um ramo de flores. O mesmo ramo de flores que ela arremessou, conta Aquilino Ribeiro, à cara do Buiça, quando apontava e disparava a carabina. Proclamada a República, Dantas adere-lhe e publica na "Capital", em folhetins, Cruz de Sangue", reunida depois em livro sob o título "Pátria Portuguesa", uma exaltação do povo e uma condenação da nobreza. Perante o conflito desencadeado com a Igreja pela Lei da Separação de Afonso Costa, redige a peça "A Santa Inquisição", em que condena violentamente o Santo Oficio. Com o advento do salazarismo, dá-nos "Frei António das Chagas" elogio de quem se sacrifica, se imola pela Pátria. O abalo provocado pelo MUNAF pelo MUD, que faz estremecer a posição de Salazar, leva-o a reformular a "Antígona' com que se estreou Mariana Rey Monteiro, uma crítica ao velho ditador através da personagem de Creonte.
Há quem, ironizando, goste de dizer que, se Dantas continuasse vivo, teríamos tido peças sobre o 25 de Abril, o PREC, Mário Soares, Cavaco Silva - a favor e contra.
Almada Negreiros mostrou-se mais transparente. Apoiou o salazarismo e o catolicismo, fez vitrais para a igreja e murais para o regime. Aceitou denegrir figuras da oposição (caso de Norton de Matos) e propagandear grupos do regime (caso da Legião Portuguesa).
Morreu crente, com funeral católico e pompa religiosa. Era amigo de Cerejeira, admirador de Salazar.
Quando este vai à antestreia do "Auto da Alma", no Teatro S. Carlos, com cenários seus e interpretação de Maria Lalande, ambos se precipitam, no final, para o então presidente do Conselho.
- Posso dar-lhe um beijinho?, pergunta a actriz.
Salazar, indiferente:
- Se isso lhe dá prazer...
Ela beija-o.
Almada avança:
- Posso cumprimentar Vossa Excelência?
Salazar fita-o:
- É o senhor Almada?
Almada curva-se respeitosamente:
- Sim, senhor Presidente, sou eu. Tenho muita, muita honra em cumprimentá-lo!
À distância, Vitorino Nemésio cicia para um amigo, que nos conta o episódio:
- O Dantas está vingado!
À pergunta sobre o que pensava de Deus, Dantas respondia sempre: "Como sabem, sou acima de tudo um homem de teatro. Ora Deus para mim é um elemento essencialmente cénico.
Dantas, a quem Augusto de Castro chamava o Quarto Cardeal, em alusão à "Ceia dos Cardeais", que eram três, e aos inúmeros bispos, frades, freiras, abades que povoam as sua obras ("são figuras eminentemente teatrais", repetia), recusa-se a casar religiosamente e exige que o seu funeral seja civil.
"Isso causou uma grande perturbação nos meios católicos, dado o seu prestígio", destaca-nos António Valdemar, presente no funeral. "Para salvar as aparências, Cerejeira pediu ao padre Moreira das Neves que se deslocasse à Academia das Ciências, onde o corpo estava em câmara ardente, e que permanecesse junto da urna, de joelhos, a rezar, sobretudo nas alturas em que a sala tivesse mais gente. Moreira da Neves assim fez".
Vitorino Nemésio, que sucedeu a Júlio Dantas na Academia, fez, ao ocupar-lhe o lugar (a cadeira número 13), a evocação oficial. Com talento, com desassombro, sublinha ("não me cansarei de o elogiar!") a sua alta qualidade literária e a sua invulgar mestria dramatúrgica - que lhe dão lugar cimeiro nas letras portuguesas.
Carlos Malheiro Dias vai mais longe:
"Ninguém como Dantas deu tanta plasticidade, tanta riqueza verbal, tanto ímpeto à nossa língua. Nem o Eça, nem o Fialho".
Hoje, 100 anos volvidos sobre o seu nascimento, Almada Negreiros é, como Júlio Dantas, uma instituição da nossa cultura. Ambos têm as contradições, os excessos, os sonhos, as jactâncias, as perversidades dos excepcionais. Noutras circunstâncias, noutra época, poderiam ter sido talvez cúmplices e assumido posições diferentes - inversas?
Eram demasiado grandes para ficarem alheios um ao outro. Mereceram-se um ao outro.»
IR - "anti-dantas", por uma nova geração da escrita.
sábado, 11 de setembro de 2010
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
"Ensaio sobre a Cegueira": é preciso que todos vejam para além do visível...
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quinta-feira, 1 de julho de 2010
Para Saramago, Da cegueira das mentes brancas", por Isabel Rosete
Ah, aquela cegueira branca
Que cega o Amor, a Morte,
A Vida, o Corpo, o Pensamento,
Que fustiga a Alma em todo o seu ser!
Todos são vítimas! Ninguém escapa
Ao opaco, á ausência de transparência
Da luz que não mais se vê,
Nem no princípio, nem no fim,
Dos canais que vão dos olhos
Até ao cérebro.
Só há corpos! Não há olhos!
Só há lentes! Não há olhos!
O Mundo tornou-se invisível.
Nada se vê!
Só se ouvem vozes, tão próximas
Quanto distantes do corpo
Que só se sente, porque se tacteia;
Do corpo que só sente, porque se presente.
Ah, esta maldita epidemia
Que desventurou a humanidade
Já desventurada
Com o “Não” do visível,
Com o “Sim” do audível
Que, ainda nos resta!
Revirai os corpos e os olhos,
Os ouvidos, todos os sentires
Agora despertos pela cegueira
Do branco luminoso.
Atrevei-vos, nem que seja uma vez só!
Não há mais nenhuma maldade tamanha
Que na Terra possa surgir: o erro,
O engano do Ver, que não é visível,
A fraude do Olhar que olha, mas não vê,
O invisível aos olhos...
Cataratas, glaucomas, miopia...
O nevoeiro, o turbo, o vazio,
O opaco... a cegueira da cegueira...
Não há Lua, não há Sol, não há Estrelas!
Nada brilha por entre a multidão histérica
Dos cegos corpos enfurecidos.
Instala-se o caos, não o dos olhos
Da cara, mas o dos olhos das mentes.
Acabaram-se os filtros, os entre-meios,
Os meios-termos...
Os limites apagaram-se.
Tudo se torna possível!
Que moral, que pudor, que pré-conceitos?
Que regras do nu ou do vestido?
Que solidariedade de corpos e de almas?
Que tolerância pelo Amor próprio?
Que tolerância pelo Amor do outro?
Que caminho? Que guia?
Resta-nos Blimunda! A “Sete-Luas”?
Sim, essa mesma. Mas, essa...
Mas, essa... só vê por dentro e de olhos
Fechados num corpo, ainda, virgem!
Desgraça, desgraça... Que desgraça!
É o Humano! Porém, esperai. Não vos
Apresseis. A Luz chegará; o Sol voltará
A iluminar-nos; as Estrelas a cintilarem
E a Lua a mostrar, claramente,
Todas as suas faces.
O Céu voltará a ser azul e não mais branco.
- “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Isabel Rosete
18/06/2010
Que cega o Amor, a Morte,
A Vida, o Corpo, o Pensamento,
Que fustiga a Alma em todo o seu ser!
Todos são vítimas! Ninguém escapa
Ao opaco, á ausência de transparência
Da luz que não mais se vê,
Nem no princípio, nem no fim,
Dos canais que vão dos olhos
Até ao cérebro.
Só há corpos! Não há olhos!
Só há lentes! Não há olhos!
O Mundo tornou-se invisível.
Nada se vê!
Só se ouvem vozes, tão próximas
Quanto distantes do corpo
Que só se sente, porque se tacteia;
Do corpo que só sente, porque se presente.
Ah, esta maldita epidemia
Que desventurou a humanidade
Já desventurada
Com o “Não” do visível,
Com o “Sim” do audível
Que, ainda nos resta!
Revirai os corpos e os olhos,
Os ouvidos, todos os sentires
Agora despertos pela cegueira
Do branco luminoso.
Atrevei-vos, nem que seja uma vez só!
Não há mais nenhuma maldade tamanha
Que na Terra possa surgir: o erro,
O engano do Ver, que não é visível,
A fraude do Olhar que olha, mas não vê,
O invisível aos olhos...
Cataratas, glaucomas, miopia...
O nevoeiro, o turbo, o vazio,
O opaco... a cegueira da cegueira...
Não há Lua, não há Sol, não há Estrelas!
Nada brilha por entre a multidão histérica
Dos cegos corpos enfurecidos.
Instala-se o caos, não o dos olhos
Da cara, mas o dos olhos das mentes.
Acabaram-se os filtros, os entre-meios,
Os meios-termos...
Os limites apagaram-se.
Tudo se torna possível!
Que moral, que pudor, que pré-conceitos?
Que regras do nu ou do vestido?
Que solidariedade de corpos e de almas?
Que tolerância pelo Amor próprio?
Que tolerância pelo Amor do outro?
Que caminho? Que guia?
Resta-nos Blimunda! A “Sete-Luas”?
Sim, essa mesma. Mas, essa...
Mas, essa... só vê por dentro e de olhos
Fechados num corpo, ainda, virgem!
Desgraça, desgraça... Que desgraça!
É o Humano! Porém, esperai. Não vos
Apresseis. A Luz chegará; o Sol voltará
A iluminar-nos; as Estrelas a cintilarem
E a Lua a mostrar, claramente,
Todas as suas faces.
O Céu voltará a ser azul e não mais branco.
- “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Isabel Rosete
18/06/2010
terça-feira, 22 de junho de 2010
Contra a Cegueira intelectual
Discurso pronunciado por José Saramago ao receber o Prémio Nobel da Literatura
"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado.
E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira”. Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava… No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: “E depois?”. Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: “Não faças caso, em sonhos não há firmeza”. Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”. Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: “Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia… Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas”. E terminava: “Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?”
Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga… À minha árvore genealógica (perdoe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser.
Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.
Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.
Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as “Rimas” e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de “Os Lusíadas”, que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de “Sôbolos rios”… Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça de teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: “Que fareis com este livro?”. Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros…
Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava… E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar… Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu”. Que assim seja.
De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito… Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - “Atena” era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis (”Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes”), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”. Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das “Odes” alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: “Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria…”
O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”. Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais… Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal…), o romance que então escrevi – Jangada de Pedra – separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, “massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais”, a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens… Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra – duas mulheres, três homens e um cão – viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros…). Isso lhes basta.
Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um “sim” um “não”, subvertendo a autoridade das “verdades históricas”. Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: “Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor”. Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo.
Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do “Novo Testamento” à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes… Nesse “Evangelho”, escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O “Evangelho” do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: “Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez”, por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético “Evangelho” escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: “A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba”.
Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio…
Cegos. O aprendiz pensou: “Estamos cegos”, e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se “Todos os Nomes”. Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo."
Estocolmo, 7 de Outubro de 1998
Isabel Rosete- divulgação
"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado.
E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira”. Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava… No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: “E depois?”. Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: “Não faças caso, em sonhos não há firmeza”. Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”. Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: “Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia… Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas”. E terminava: “Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?”
Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga… À minha árvore genealógica (perdoe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser.
Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.
Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.
Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as “Rimas” e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de “Os Lusíadas”, que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de “Sôbolos rios”… Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça de teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: “Que fareis com este livro?”. Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros…
Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava… E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar… Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu”. Que assim seja.
De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito… Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - “Atena” era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis (”Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes”), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”. Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das “Odes” alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: “Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria…”
O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”. Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais… Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal…), o romance que então escrevi – Jangada de Pedra – separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, “massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais”, a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens… Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra – duas mulheres, três homens e um cão – viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros…). Isso lhes basta.
Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um “sim” um “não”, subvertendo a autoridade das “verdades históricas”. Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: “Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor”. Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo.
Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do “Novo Testamento” à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes… Nesse “Evangelho”, escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O “Evangelho” do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: “Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez”, por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético “Evangelho” escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: “A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba”.
Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio…
Cegos. O aprendiz pensou: “Estamos cegos”, e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se “Todos os Nomes”. Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo."
Estocolmo, 7 de Outubro de 1998
Isabel Rosete- divulgação
terça-feira, 8 de junho de 2010
IDENTIDADE
Isabel Rosete
Assumir, convictamente, a Identidade… Seguramente, o maior esforço de todo o ser humano, neste Mundo de falsas identidades ou de identidades camufladas, fundeadas no espaço camaliónico das diferenças não aceites, da imposição de um padrão comum, do estereotipado, onde não há lugar para o ser-si-mesmo, nesta sociedade do “parecer-ser”, em nome de um tal “bem-estar” comum que, na generalidade, não passa de uma mera utopia demagógica.
Vigora a mais deslavada hipocrisia anulativa das dissemelhanças, da diversidade, que faz a singela Beleza intrínseca à essência do universo físico e humano, a que já não pertencemos mais.
Adulterámos as Leis da Natureza. Instaurámos o caos cósmico. A isso, chamamos progresso! Que progresso? O da rarefacção da camada de ozono? O do efeito de estufa? O do degelo dos oceanos? O do des-equilíbrio dos ecossistemas? O da miséria das crianças sub-nutridas? O dos Povos famintos? O da infelicidade dos Homens que clamam o Paraíso perdido?
O “progresso” da irracionalidade, das mentes inconscientes, dos pensamentos corroídos pelo ódio, instaurou-se, lamentavelmente, no seio desta massa humana, indefesa, des-norteada, que hoje somos.
Coitados dos homens! Tão potentes e tão frágeis, ao mesmo tempo! Meras peças soltas do grande puzzle, do puzzle universal, onde já não se encaixam mais.
Somos mero pó, cinzas dispersas, em incandescência dissonante. Somos o brilho opaco dos restos do lixo cósmico, em degeneração total.
Corremos pelos leitos de todos os rios, que, no mar, não desaguam mais. Perdemo-nos de nós mesmos. Não nos encontramos mais. Rodopiamos num círculo imperfeito de esferas desencontradas, de espaços sem intersecção, indefinidos, incertos, indeterminados, mas, ao mesmo tempo, “extra-ordinários”, libidinais, irascíveis e concupiscentes.
Erramos, navegamos pelos espaços infindos da imaginação. Buscamos o Infinito, o Eterno, o Imutável. Projectamos um futuro outro, apenas existente no mundo ficcional de todos os nossos sonhos que, do “princípio da realidade” se afastam, para erguerem, sempre, o “princípio do prazer”.
Velejamos por todos os mares. Pairamos por todos os espaços siderais. Percorremos todos os caminhos da Floresta, sempre paralelos, sempre descontínuos! A escolha não é mais possível!
Esmagamos um Ego desesperado, descentrado de si mesmo, tão narcísico quanto paradoxal. E, no entanto, ainda somos aves de rapina, predadores universais, dominadores de todas as possíveis presas, dissimulados num habitat, que já não é mais natural.
Percorremos todos os atalhos. Edificamos uma nova ordem. A da caoticidade mundial. E, no entanto, ainda somos apelidados de “animais racionais”.
Que racionalidade é esta, criadora de um tempo de infortúnio? Que racionalidade é essa, geradora de todas as misérias? Que racionalidade é esta re-veladora da massa indigente das gentes vagueantes, bicéfalas?
E a salvação? Ainda é possível? É, sem dúvida! Porém, apenas se nela depositarmos, convictamente, a força geradora da nossa vontade-de-poder.
Isabel Rosete
Isabel Rosete
Assumir, convictamente, a Identidade… Seguramente, o maior esforço de todo o ser humano, neste Mundo de falsas identidades ou de identidades camufladas, fundeadas no espaço camaliónico das diferenças não aceites, da imposição de um padrão comum, do estereotipado, onde não há lugar para o ser-si-mesmo, nesta sociedade do “parecer-ser”, em nome de um tal “bem-estar” comum que, na generalidade, não passa de uma mera utopia demagógica.
Vigora a mais deslavada hipocrisia anulativa das dissemelhanças, da diversidade, que faz a singela Beleza intrínseca à essência do universo físico e humano, a que já não pertencemos mais.
Adulterámos as Leis da Natureza. Instaurámos o caos cósmico. A isso, chamamos progresso! Que progresso? O da rarefacção da camada de ozono? O do efeito de estufa? O do degelo dos oceanos? O do des-equilíbrio dos ecossistemas? O da miséria das crianças sub-nutridas? O dos Povos famintos? O da infelicidade dos Homens que clamam o Paraíso perdido?
O “progresso” da irracionalidade, das mentes inconscientes, dos pensamentos corroídos pelo ódio, instaurou-se, lamentavelmente, no seio desta massa humana, indefesa, des-norteada, que hoje somos.
Coitados dos homens! Tão potentes e tão frágeis, ao mesmo tempo! Meras peças soltas do grande puzzle, do puzzle universal, onde já não se encaixam mais.
Somos mero pó, cinzas dispersas, em incandescência dissonante. Somos o brilho opaco dos restos do lixo cósmico, em degeneração total.
Corremos pelos leitos de todos os rios, que, no mar, não desaguam mais. Perdemo-nos de nós mesmos. Não nos encontramos mais. Rodopiamos num círculo imperfeito de esferas desencontradas, de espaços sem intersecção, indefinidos, incertos, indeterminados, mas, ao mesmo tempo, “extra-ordinários”, libidinais, irascíveis e concupiscentes.
Erramos, navegamos pelos espaços infindos da imaginação. Buscamos o Infinito, o Eterno, o Imutável. Projectamos um futuro outro, apenas existente no mundo ficcional de todos os nossos sonhos que, do “princípio da realidade” se afastam, para erguerem, sempre, o “princípio do prazer”.
Velejamos por todos os mares. Pairamos por todos os espaços siderais. Percorremos todos os caminhos da Floresta, sempre paralelos, sempre descontínuos! A escolha não é mais possível!
Esmagamos um Ego desesperado, descentrado de si mesmo, tão narcísico quanto paradoxal. E, no entanto, ainda somos aves de rapina, predadores universais, dominadores de todas as possíveis presas, dissimulados num habitat, que já não é mais natural.
Percorremos todos os atalhos. Edificamos uma nova ordem. A da caoticidade mundial. E, no entanto, ainda somos apelidados de “animais racionais”.
Que racionalidade é esta, criadora de um tempo de infortúnio? Que racionalidade é essa, geradora de todas as misérias? Que racionalidade é esta re-veladora da massa indigente das gentes vagueantes, bicéfalas?
E a salvação? Ainda é possível? É, sem dúvida! Porém, apenas se nela depositarmos, convictamente, a força geradora da nossa vontade-de-poder.
Isabel Rosete
quarta-feira, 3 de março de 2010

Nas “Montanhas do Coração”
Por Isabel Rosete
«”Levar a termo e dar à luz” – eis tudo. É preciso deixar cada impressão, cada gérmen de sentimento amadurecer em si, no obscuro, no inexprimível, no inconsciente – essas regiões fechadas ao entendimento.»
Movendo o nosso discurso pelas entranhas da obra poética e epistolar de Rainer Maria Rilke (1875-1926), pretendemos auscultar a mais íntima musicalidade que invade a escuta do Poeta Praga, cantor do canto da Terra, “em tempo de infortúnio”, na solidão do seu ser e do seu estar, em desassossego perpétuo.
Adoptou como Pátria a Poesia, o único lugar sagrado isento de fronteiras materiais, situado para além do tempo e do espaço fisicamente determinados, circunscrito apenas pelo Espírito Universal, que dialecticamente se move em todas as direcções. Com agilidade, voa o espírito do Poeta «para bem longe dos mórbidos miasmas:/ Tenta purificar-se no ar superior / E bebe, como um puro divino licor, / O branco fogo que enche os límpidos pedaços.»
Distancia-se dos Homens para encontrar a felicidade, a riqueza e a insondável grandeza da Natureza. Ama os animais e todas as coisas que a integram, como São Francisco, numa serenidade quase celestial. Acolhe-se nas sombrias noites das cidades modernas, tão densas quando a massa do Mundo. Refugia-se nas longas noites estreladas, contempladas do “Castelo de Duíno” ou da “Torre de Muzot”, que iluminam a sua alma solitária, dolorida pelo Amor, que não compreende.
Caminha, solitário, por este Mundo imenso, para que o barulho ensurdecedor das vozes humanas – sempre dispersas, sempre em “con-fusão” e rebelião por causas perdidas – não o impeçam de ouvir os “ex-traordinários” silêncios da Natureza, companheira de todas as horas, mãe, irmã e divina Mestra.
Só a solidão, o seu lar e ponto de apoio, lhe parece necessária. O seu crescimento é doloroso, como o das crianças. Triste, como a “ante-Primavera”. Caminhar, apenas consigo próprio, vaguear, durante algumas horas e não encontrar ninguém, eis ao estado existencial a que pretende chegar, acobertado pelo silêncio infinito do mundo interior, inaugurando “um novo começo, sinal, transformação”, tão-só através do “templo do ouvido” .
O Poeta manifesta, desde cedo, uma necessidade inata de transformação e de renovação, que o impelem, de modo imperativo, a vagar pelo Mundo, a abandonar a esposa, a família e os amigos. Escrever, compulsivamente, é o acordo que estabelece com a realidade, movido pela urgência de registar todos os pormenores sentidos, vistos ou escutados, para os transformar no testemunho vivo do seu peregrinar. Segue à parte das realidades sociais e humanas. Permanece só, na “solidão interior”, “por essência grande, pesada e difícil de suportar”, embora também fonte de crescimento, de aprendizagem e conhecimento.
Assim o reitera Rilke, convictamente, na sua condição de poeta errante e homem solitário: «o “homem de solidão” é ele próprio uma coisa submetida às profundas leis da vida. E quando um desses homens ergue o seu olhar, de madrugada ou ao cair da noite – essa hora cheia de realizações – e sente o que se está consumando, esse homem despoja-se de qualquer condição como se estivesse para morrer, se bem que só então entre na verdadeira vida.»
A todo o momento revela uma personalidade consciente e perseverante – apesar de frágil e inquieta, de uma hipersensibilidade indescritível – erguida sob a base da realização de um determinado efeito poético, presente em todos os temas sobre os quais reflecte: os Anjos, belos e terríveis ; a vida interior, na sua profundidade absoluta; as rosas, abertas, tão soltas e dispersas no seu desfolhar, inumeráveis flores, objectos inesgotáveis; a mudança, na «INSTÁVEL balança da vida / sempre a oscilar», «sempre em mutação” ; as fontes, bocas que doam e falam do uno puro e inextinguível, máscaras de mármore de onde jorra a água corrente; a vida e a morte, “opostos complementares”, umbilicalmente reunidos, enquanto partes integrantes do mesmo Todo, da Unidade primordial.
Rainer Maria Rilke é, ainda, um poeta da Morte, esse outro lado da vida que não vemos, que não está iluminado para nós; do silêncio, que «colocou para sempre o rosto humano / na balança das estrelas» e do qual espera “o magnifico presente de horas boas e belas” ; da angústia e da reclusão, estados perenes de criação que perpassam toda sua vida; do indizível, onde as palavras se esgotam e «a música sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina» ; das coisas visíveis e invisíveis, jamais dissimuladas em algum momento, porque pertencentes às grandes realidades da Vida, por si próprio desnudadas.
Porém, a Vida, na sua materialidade, não tem a mínima realidade. Só a vida interior é alvo das suas meditações. Só os fenómenos do subconsciente têm, efectivamente, um valor real. Só as ideias abstractas possuem, de facto, uma existência concreta.
Embora não se tenha vinculado a nenhuma escola ou tendência poético-literária, mesmo não tendo defendido, propriamente falando, nenhuma teoria ou sistema, Rilke conduz os seus leitores ao âmago das categorias estético-filosóficas do Modernismo. É, por excelência, um escritor modernista, apesar da sua poética se ter iniciado com composições de estilo impressionista, integradas na concepção decadentista, tão característica da sua época.
Envolto por esta ambiência, concebe as obras de arte como “seres vivos e secretos”, auras misteriosas do Ser cuja vida não tem terminus, contrariamente à nossa, que cessa em escassos momentos de efemeridade. Só os “bons poemas”, enquanto obras de arte assim consideradas – «uma obra de arte é boa quando nascida de uma necessidade», sendo apenas «a natureza da sua origem que a julga» – têm existência própria, autonomia ou independência determinada. Por isso, só os “bons poemas” são dignos de ultrapassar as fronteiras do perecimento, eternizando, mantendo vivo, o autor que os lavrou.
A obra de arte, em geral, e a Poesia, em particular, tornam-se um acto inexprimível racionalmente. Realizam-se, tão-só, numa região jamais atingida pela palavra: o Coração. A Poesia move-se nas franjas insondáveis do Mistério, sobre o qual não se tem qualquer espécie de controlo.
O Poeta, tal como todo o artista, é um ser privilegiado, porque escolhido pelo “Acaso” ou, quiçá, pelos “Espíritos”, que lhe incumbiram a missão de traduzir, em versos simples, a beleza do Universo. Ciente desta escolha, não pode demarcar-se de uma certa astúcia, nem dos domínios da Estética. Deve dissimular, previamente, os sinónimos, os arcaísmos ou os neologismos; preferir as palavras comuns às ex-traordinárias, para que possa garantir, em qualquer caso, o carácter de simplicidade da obra de arte. Só deste modo, a Arte poderá permanecer na memória do seu público, manter-se eternamente viva, mesmo depois da morte física do seu criador.
Urge interpretar as palavras de uma forma que extravase a hermenêutica tradicional, imergi-las numa outra ordem conceptual, próxima do “topos” da Criação. Urge libertar os espíritos das explanações pré-estabelecidas, lutar contra a linguagem convencionada, castradora da escrita originária, da criação aberta, do olhar microscópico, capaz de atravessar o opaco véu que oculta a realidade. Urge, por último, manter-se bem longe das palavras da crítica, apenas conducentes a mal-entendidos, e assim tornar claramente manifesto o Pensar, em vez do significar.
A sua orientação poética é delimitada pelo uso de imagens minuciosamente escolhidas, por um estilo espiritual único, irrepetível, que vai nascendo à medida que este delicado escultor das palavras procura os meios mais adequados para desenvolver a sua arte, os apetrechos mais apropriados para esculpir cada um dos seus versos.
Rilke acredita, quando da escrita se trata, na importância do trabalho quotidiano, na observação dos acontecimentos mais triviais , comuns a todos os seres humanos. Defende a escrita simples, translúcida e autêntica, que o ordinário possa fazer despoletar. Assim o declara, em tom de conselho, nas «Cartas a um Jovem Poeta»: «Fuja dos grandes assuntos em favor daqueles que o seu quotidiano lhe oferece. (...) Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objectos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes.»
Como esta explicação não lhe parece suficientemente satisfatória para a aprendizagem do “jovem poeta”, Franz Xaver Kappus , Rilke prossegue essa sua missão de conselheiro do Poema, de guia das palavras, pelas quais se exprime a intimidade do Sentir: «Só há um caminho», afirma peremptoriamente: «entre em si próprio e procure a necessidade que o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo:”Morreria se não me fosse possível escrever?”. Isto, sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta:”Sou realmente obrigado a escrever?”»
Se a experiência de Paris (1904 -1910) , amplamente reflectida nos «Cadernos de Malte Laurids Brigge» (1910) , assinala o início de uma nova etapa, aquela em que se incorporam ao mundo interior do Poeta sensações de terror, perante a inautenticidade da Vida e da Morte, e de estranheza, face ao Mundo, à beira do seu colapso total, em «As Elegias de Duíno» (1922-23) – escritas pela mesma altura de «Os Sonetos a Orfeu», o "seu canto de cisne", obra em que dá continuidade, num tom elegíaco-hínico, à herança de Hölderlin, – questionam-se as possibilidades de vivência do homem sem Deus, ao mesmo tempo que se vislumbra, na criação poética, o caminho da salvação.
Rainer Maria Rilke determina com a sua arte a nossa mundivisão, a nossa realidade e existencialidade epocal, no seio da efervescência de uma Europa culta onde se respira a atmosfera do “Expressionismo" alemão e do “Futurismo” italiano. Porém, em descrições expressionistas – tão características do estilo literário adoptado nos «Cadernos» – mergulha no silêncio, aprende a ver, e em si tudo penetra profundamente, apesar do devir, da constante metamorfose enteológica: «Mude embora o mundo / como as nuvens depressa, / a perfeição regressa / a um antes mais profundo.» Apercebe-se, então, de um estado interior jamais conhecido, a partir do qual tudo acontece e de onde tudo surgirá.
Pretende, apenas, ser um "poeta feliz de coração altivo”. Estar para além dos que inspiram piedade ou repugnância, mormente quando se sente esmagado pelos ruídos estridentes das vozes ensurdecedores, que pela cidade ecoam.
Só, irremediavelmente só, permanece o Poeta no colo incógnito das multidões avassaladoras da grande cidade, sem rosto próprio: «estava pesado de suor, e rodopiava dentro de mim uma dor estonteante, como se alguma coisa muito grande me circulasse no sangue, alguma coisa que me fizesse inchar as veias ao passar. E sentia ao mesmo tempo que o ar tinha acabado há muito e que eu apenas respirava exalações que os meus pulmões já não queriam.»
Sufoca, com a velocidade alucinogénia. Indigna-se, com o anonimato das gentes extraviadas. Recusa, a anulação do indivíduo imposto pelas massas indiferenciadas, mensageiras da podridão do Futuro, portadoras dos cheiros nauseabundos, responsáveis pela crueldade desenfreada. A Estrela dos seus olhos, não brilha mais. O Sol da sua natureza, esmorece, por entre as nuvens carregadas de um cinzento profundo. Resta-lhe, tão-só, guardar num lugar incógnito «a forma e a essência divina dos seus amores decompostos»
Sente, por isso, a imperiosa necessidade de tornar apreensível a Vida que, progressivamente, se vai recolhendo ao Invisível. Fá-lo, recorrendo a fenómenos e a imagens da sua infância – essa «preciosa e magnífica riqueza, esse tesouro de recordações» –, do seu ambiente parisiense ou das múltiplas leituras a que se dedicou, predominantemente orientadas pelo espírito de Baudelaire, autor das «Flores do Mal», o “poeta maldito”, talvez. Não obstante, lucidamente consciente de que «por entre os nossos vícios, galeria abjecta, / Existe um bem mais feio, mais cruel, imundo! / Que, mesmo recusando gestos ou clamores, / Facilmente faria da terra um destroço / E num simples bocejo engoliria o mundo; / é o tédio – Com o olhar chorando sem razão, / Vai fumando o cachimbo e sonha cadafalsos. / Conheces bem, leitor, tal monstro delicado, / – Hipócrita leitor, – meu igual, – meu irmão!»
Rainer Maria Rilke vive o período histórico das grandes inovações tecnológicas, do surgimento da electricidade, do cinema e do automóvel; do aparecimento e utilização desmedida das máquinas, triunfantes em todos os domínios onde toca a já insensível mão humana, “des-naturalizadoras” da Natureza e do Homem: «A máquina ameaça o alçado enquanto / ser no espírito e não no obedecer lhe apraz. / Não brilhe em mãos esplêndida um hesitante enquanto, / talha ela firme o edifício audaz. / Nunca se atrasa, pra lhe escaparmos uma vez / e ser dona de si, oleada, na fábrica em sossego. / é a vida, e ela acha ser quem melhor sabe e fez, / e ordena, cria e destrói com o mesmo apego.»
A actividade criadora do poeta não é, obviamente, independente desta nova reestruturação da História. Muito pelo contrário. Rilke interioriza a mundividência do seu (nosso) tempo, no lugar mais recôndito do seu coração. Revela-a, sem eufemismos. Muda a orientação da sua escuta, de regresso ao não maculado. Insurge-se contra a ambivalência do rumo seguido pelas revoluções técnico-científicas, em prol da defesa arrojada do não devassamento da Natureza e do Homem.
A mecanização e a Guerra atrofiam os ideais estetizantes dos autores modernistas. Ameaçados pelo desencanto e pelo tédio, inclinam-se para um misticismo exaltado, para a mostração desse sentimento de niilismo, de absurdo, de ausência de sentido da Existência, que o Poeta das «Elegias» tão bem conhece.
Contrariamente à posição proferida por Marinetti, no seu «Manifesto da Literatura Futurista», as máquinas não são, para Rilke, a expressão máxima da actividade artística, nem a “Revolução Industrial” a manifestação primorosa da realidade então vivenciada. Esta postura leva-o a rejeitar a tese que faz da Razão a grande salvadora e o único meio possível de redenção de todos os males. No seu lugar, coloca o coração, cuja linguagem e sentido são capazes de transmitir as mais fabulosas e ex-traordinárias experiências da Humanidade. Os cânones retóricos que definham a linguagem são, de igual modo, rejeitados. A linguagem natural, a do Poeta, que contém em si o poder evocador do som das palavras originais, é a única que importa.
Mais do que aos sentimentos, Rilke dirige-se aos sentidos, em detrimento do racionalismo exacerbado e inconsequente dos “Tempos Modernos” . Deseja obter, unicamente, o refinamento estético, o exotismo, o prazer da palavra e dos sons dela nascidos. Apenas com «palavras e gestos temos arte / de ir captando ao mundo» o que ele nos esconde, na sua pobreza ou na sua miséria, na sua sublimidade ou na sua vileza ou, simplesmente, na sua parte “mais fraca e perigosa” .
A sua missão, enquanto Poeta, é “celebrar” – «Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar,» – os sons virgens da Natureza, da Terra, e de todos os seus elementos, naturalmente integrados no círculo órfico. Por si próprios falam da Vida e da Morte, na sua perfeita unidade, na sua comunhão absoluta: os frutos , as flores , as rosas (pelo poeta eleitas, entre todas as espécies florícolas), os bichos, as árvores, os pássaros .
Rilke aceita esta missão como uma dádiva divina, como um mandado, mesmo quando percorre por «caminhos que não conduzem a parte alguma, / algures, entre dois prados; / que diríamos que, com arte, / foram desviados da rosa-dos-ventos, / caminhos que, muitas vezes, não/ têm à sua frente nada mais / que não seja o tempo em que se está, / e o puro espaço existente.»
“Erguido como uma dádiva”, sobre as “montanhas do coração”, “prás mãos abertas“ se liberta este Poeta europeu de dimensão universal. Escuta a Terra “completa e bela, quente como o pão». Observa as “rosáceas de luz” com um “excesso de claridade” que, ofuscadamente, domina os trilhos dos caminhos da vida, nem sempre conscientemente determinados . Move o seu olhar pelas paisagens desertas, ainda não maculadas pelo poder devastador das máquinas. Por último, num derradeiro grito de salvação do originário, canta, de novo, reiteradamente, a «terra silente onde nem os profetas falam, / terra que prepara o seu vinho; / onde as colheitas cheiram ainda a génesis, / não temendo que se desfaça. / Terra por de mais altiva para aspirar ao que transforma, / que, obedecendo ao estio, / à imagem do olmo e da nogueira, parece / feliz com o que não muda. / Terra em que só quase as águas trazem novas, / infiltrando, por entre a aspereza das tuas consoantes / e claridade das vogais que lhe pertencem.»
Neste contexto nasce a simbiose da escrita rilkeana com a pintura de Cézanne e de Böcklin, o diálogo estabelecido pela sua Poesia com outras linguagens artísticas, a combinação ecléctica de linguagens e de símbolos, importadas de outras formas da Arte se dar. Em «Os Sonetos a Orfeu», para citar apenas um exemplo desta aliança, a linguagem da Música e da Poesia relacionam-se intimamente. Dão-se numa plena fusão semântica, quer enquanto modos complementares de um mesmo Dizer, quer como formas de inteligibilidade do mundo interior, onde eleva, numa fala indizível, o Amor, terrivelmente despedaçado pelo Destino, implacável, que conduz todas as coisas ao seu próprio fim, independentemente das escolhas humanas.
Tal como Nietzsche, Rilke traz-nos a melancolia de uma alma estilhaçada. Tão estilhaçada quanto um espelho, partido em mil pedaços, pela dor do Amor. A metáfora do espelho evoca Narciso, na reflexologia do seu Ego. Denota a terrível incógnita do ser e do parecer ser, do oculto e do des-velado, da fidelidade ou infidelidade dos contornos da figura nele representados. Os espelhos guardam, no seu vão, todos os reflexos. Da sua essência nada sabemos. Nunca ninguém poderá explicá-los. «Como os furos do crivo”, são “a ausência do tempo a preencher cada intervalo». Porém, «a mais bela de todas as figuras / ficará lá no fundo, até nas faces carregadas/romper claro o narciso em sua nitidez.»
Depois, vêm as Rosas. Sempre as Rosas! Símbolos deste sentimento na duplicidade da sua significação: por um lado, a veludez e a suavidade das pétalas; por outro, a agressividade e a violência dos seus espinhos. À semelhança do Amor, um dia, também desfloram. No chão ressequido, caiem as suas pétalas, quando já murchas e encarquilhadas. Tornam-se pó. Juntam-se à Terra, tal como o Amor desfeito, em lágrimas de amargura, que o coração jamais pode suportar.
Enquanto viajante eternamente solitário pelas mais diversas paragens do Mundo, por onde ainda paira o seu espírito infinitamente sensível e perscrutador, Rilke procura outras culturas e, sobretudo, um outro sentido para a Existência, posto em causa pelos massacres da Guerra. Vive intensamente cada momento do seu estar-aí, como se fosse o último, consumido pelos caminhos da Vida adversa à plena realização dos seres puros. Em cada lugar, procura um outro sentido que legitime o simples facto de ele próprio existir, apátrida, como cidadão do Mundo.
Rainer Maria Rilke é o atleta dos sentidos. Do ver e, sobretudo, do escutar. É o gladiador do silêncio. Desse trágico e imenso silêncio do Mundo, anunciador de um outro começo, sinal de renovação. O seu corpo não dobra perante um instrumento ou uma imagem. Apenas diante do Destino, quando impelido a sentir o silêncio universal, sempre que extravasa o ruído incómodo das coisas mais mesquinhas.
Permanece, errante, para além da musicalidade das palavras sentidas e intimamente vividas, antes da escrita. O esplendor do canto de cada vogal ou de cada consoante diz, nomeia, traz à luz a realidade na sua existência própria, de uma forma tão sublime e radiosa, que nos transporta para a sua interioridade. Afinal, “cantar é existir”. “Cantar é na verdade um outro alento” . Assim se determina a dimensão ontológica do canto, o poder de dar ser pela palavra poética, tão criadora quanto Verbo de Deus.
É pelo canto inaugural das palavras de origem que Rilke nos mostra, envolto na nascente musical de «Os Sonetos a Orfeu», essa outra possibilidade de dizer o Mundo, O Amor, os Homens, os Anjos, a Natureza e a Terra, de onde tudo brota como se de um fundo inesgotável se tratasse. A Terra tudo doa, sem nada pedir em troca. Quando «a Primavera regressa» em «tudo a terra é uma criança». Está aí, tão presente quanto ausente. Por todos os lugares se espalha os seus membros, sempre disponíveis para nós. Livre, feliz, alegre, no seu jogo puro com os infantes, abre o espaço da Existência para que todas as coisas se perpetuem no círculo órfico.
Estupefacto e vigilante, o Poeta sente que o seu mistério é criar. Vê a Natureza com os olhos dotados da mais pura clarividência. Escuta o seu pulsar, no “templo do ouvido”, nunca deixando escapar o seu apelo. Do peito arranca o seu “rubro coração”. À Natureza o doa. «Para o céu, onde um esplêndido trono vislumbra, / O sereno poeta, ergue os braços piedosos, / E os amplos clarões do seu espírito lúcido / ocultam-lhe o aspecto dos povos furiosos.»
Torna-se "um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior". Sente-o, não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com os quais conhecemos a realidade, num esforço constante para tornar a vida real, absolutamente irreal na sua realidade directa.
Faz da sua Poesia uma arte casada com o Pensamento, um meio de realização, sem mácula, da Realidade. Impregna-a da catártica música de Orfeu, capaz de tudo mover e comover, porque magicamente encanta, não obstante a constância do sofrimento. Para esta meta deveria tender todo o esforço verdadeiramente humano – amiúde perpassado pela superfluidade animal, indiferente e sem a preocupação de exprimir o Mundo – para que a Realidade se torne mais viva e mais intensa.
Como esclarece Fernando Pessoa, pela mão de Bernardo Soares – contemporâneo de Rilke, tão social e tão intimamente Poeta – «os campos são mais verdes no dizer-se do que o seu verdor. As flores se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite. Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. (…) Temos pois de conservar (tudo) em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.» .
A metáfora do canto da Terra é correlativa da metáfora da audição. Tal como o canto, o ouvir também pressupõe criação, o fazer brotar originariamente, o trazer à luz na clarividência de um dia radioso, o âmago dos entes que nos olham, e apelam para que os preservemos das armadilhas da tecnologia moderna, aniquiladora da pureza das coisas virgens, responsável pela desvirtuação progressiva da integridade originária do seu canto. Num ritmo cronologicamente atroz, desordena o natural curso da Vida, o seu desenvolvimento, construção e crescimento.
Não obstante a existência, quiçá inevitável, do vertiginoso mundo da ciência e tecnologia modernas, no mais profundo dos abismos, confessa o Poeta, «para nós existir tem ainda encanto; ainda em cem / lugares é origem. Jogo de forças puras e patentes, / não as toca quem não admira e de joelhos não se inclina» .
Orfeu – revisitado e consagrado por Rilke, precisamente em «Os Sonetos a Orfeu» – surge, neste contexto, como aquele que é capaz de “celebrar”, o Amor e a Terra, pela magia do canto. Encarna, por excelência, a missão inaugural do Poeta: penetrar nas “montanhas do coração”, exaltando o poder dos sentidos e do sentir; tornar audíveis os sons primordiais, abafados pelos insuportáveis ruídos das máquinas; fazer escutar os ouvidos desatentos das criaturas dispersas, desnorteadas no anonimato do colectivo, onde perderam, para sempre, a sua individualidade. É do "semi-deus" essa magistral e rara qualidade.
Sendo dos "dois reinos", o da Vida e o da Morte, Orfeu está ciente de que o círculo do Ser se completa com a Morte, que a si tudo chama da forma mais arrebatadora. O deus da lira dourada de Apolo, qual arauto da Música, do Canto e da Poesia, tudo atravessa intima e profundamente, através das “orelhas da Terra”, até atingir o âmago do Ser.
Dotado dessa singular experiência ontológica que é escutar, des-vela o "ante-cantar" como essencialmente Uno. Só o silêncio dos mortos, no terrível reino de Hades onde a vida terrena acaba, pode ser seu par. A Humanidade, afastada do circuito órfico, não possui mais o entendimento desta cumplicidade, da circularidade do "vasto círculo", da imensa esfericidade do Mundo, onde tudo se recolhe. De ouvidos surdos, torna-se incapaz de cantar o canto da Terra, de escutar o seu grito de alerta, os seus apelos constantes, sempre que o perigo se aproxima.
Orfeu, o trácio, em virtude da sua pureza sexual, das suas faculdades musicais e do seu dom de profecia – mesmo após a morte – é o patrono dos ritos e das formas rituais da Vida. Tem o dom da catarsis, da purificação, do poder salvífico da música e da palavra. Vive a circularidade da existência, ciente da reencarnação das almas e da sua sobrevivência eterna, desde que conservadas de uma forma absolutamente pura.
Orfeu é o Profeta. O redentor pela Arte, a única via possibilitadora da remição do humano. Esta ideia perpassa a concepção artística rilkeana, expressa por esta mítica e lendária figura. Feita de concentração, de disciplina interior e de isolamento, a Arte é acompanhada por uma forma peculiar de ver e de escutar: aquela que é própria dos seres sensíveis, os Poetas.
O homem não é só visão, mas também, e quiçá principalmente, escuta, audição. Por isso, a Arte, produto exclusivo do obrar humano não é, para Rainer Maria Rilke, nem mimésis, nem uma mera escolha selectiva de alguns aspectos do Mundo. Mas, por essência, a forma integral da sua plena transformação. Sobre esta base vão surgindo, progressivamente, os elementos centrais da cosmogonia rilkeana: o espaço interior do Mundo, em tudo idêntico à experiência dos pássaros; o “Aberto”, lugar angélico; a voz que na paisagem cicia o sentido; o desejável equilíbrio perfeito entre esta, eterna, e o efémero corpo humano.
O Homem é a consciência da paisagem. A sua boca, por ela fala. Os seus ouvidos escutam, no silêncio do chão sagrado, os sons primeiros, estranhos à civilização industrial dos estridentes ruídos, da poluição sonora, que fere os delicados tímpanos do Poeta. O seu nariz respira os salutares aromas da Terra ainda casta, algures, embora cada vez mais ameaçada pelos insuportáveis odores das máquinas. Perante nada se comovem ou retraiem, esses motores inconscientes do progresso. Assim se mostra a arte deste Poeta modernista, abalado pela monstruosidade da Guerra, desencantado com o mundo ingrato, ferido por uma humanidade não mais sensível a essa inquietante estranheza inicial, ao momento intemporal da criação pura.
Rilke, um escritor da transição do século. Sem dúvida. Preciso e visual, continuamente movido por uma escuta atenta, pela constante intersecção dos sentidos depostos sobre as “montanhas do coração”, caminha rumo à antropomorfização da Natureza que assume, em toda a sua obra, um nível de reacções genuinamente humanas, de suave tonalidade onírica, embora sem o recurso a diligencias fantásticas ou deslumbrantes: «Vejo, desde algum tempo / como tudo se modifica. / Algo se ergue e replica / e mata e traz o sofrimento. / Deitamo-nos sem cessar entre / as flores, frente ao céu. / Exposto sobre as montanhas do / coração. Olha como aí é mínima, / olha: essa última estação das / palavras, e, mais alto, também mínimo, / ainda um último reduto do sentir. / Consegues vê-lo?»
Os seres vivos, enquanto elementos da Natureza, participam do seu inesgotável encantamento. «Stimmung», o ambiente na sua nudez essencial, é o efeito que cada um dos seus poemas faz despoletar, de uma forma naturalmente sublime. A metamorfose da Natureza agita o seu canto por intermédio de uma espécie de contemplação objectiva e serena, mesmo quando nos deparamos com a preocupação do Poeta pela sua salvaguarda imperativa.
Para além dos efeitos aliterantes e onomatopaicos, sentimos na sua escrita o encanto do jogo vocálico, típico dos simbolistas franceses. A ausência de preciosismos formais não tem lugar na sua obra. E a poetização de cada assunto vive da força das imagens fecundadas, tão-somente, pela flexibilidade de um ritmo normalmente livre.
Rilke procede, com uma certa frequência, à poetização do real: em vez da exposição lírica dos sentimentos, elege a poesia dos objectos em si mesmo considerados, visualizando-os a partir de um ângulo mais pessoal e descritivo. Com novos gestos linguísticos, impregnados de uma plasticidade quase indescritível, descreve-os até que a sua imagem se complete, até que a sua força anímica se manifeste.
A instilação visual do Poeta, tanto quanto a auditiva, desnuda a intimidade invisível das coisas. Sempre que as descreve, revela-as na sua autenticidade iluminatória, jamais captada pelo olhar do comum dos mortais, bicéfalos. No entanto, essa descrição não é, propriamente falando, objectiva, isto é, não parte da observação do Eu para o objecto, mas da auscultação do seu interior para e sobre o mundo.
Assim o esclarece Rilke, nas «Cartas a um Jovem Poeta»: «meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida brota; na sua fonte encontrará a resposta à pergunta “Devo criar?” Aceite essa resposta, tal como lhe é dada, sem tentar interpretá-la. Talvez chegue à conclusão de que a arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. Porque o criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e na Natureza à qual toda a sua vida é devotada.»
A ânsia do “Belo” e do “Aberto” realizam-se numa ambiência decadente, acentuada de uma forma particularmente estimulante, em virtude do uso reiterado da conotação negativa dos adjectivos. O desejo do místico brota como uma «busca incessante de Deus». A encenação mitológica é, apenas, um mero pretexto convencional. E a mitificação do Amor, dá-se por uma via mais objectiva, tanto quanto a reflexão sobre a Morte.
As frequentes considerações sobre a inevitabilidade da Morte, ausentes do sombrio fatalismo da mística cristã, são uma constante em Rilke. Na riqueza espiritual do Homem, na grandeza que o Mundo oferece, a Morte é um facto tão lógico como a própria vida. Requerer uma relação individual à margem de qualquer espécie de massificação. Na sua tradução poética, naturalmente vital e recorrente, ergue-se uma estrutura concêntrica em derredor do símbolo do fruto que amadurece e cai. Assim é a Morte no seio da Vida, que o seu círculo perfeito completa.
A unidade da Vida e da Morte é, claramente exposta, em os «Sonetos a Orfeu», onde vemos ressurgir o “topos” clássico da natureza divina do Poeta. Ao conquistar a glória terrena, opera o milagre da imortalidade na sua relação com o divino, sem nunca quebrar os estreitos laços que mantém com a Natureza.
Independentemente do dito e do não dito neste ensaio cabe-nos, ainda, perguntar: como olhar, hoje, – nestes “tempos de infortúnio”, do vazio das palavras e do descrédito da salvação – para a poesia de Rainer Maria Rilke, erguida sobre as “montanhas do coração? Como perspectivar a obra de um homem que pretere a razão, qual ”monstro sagrado” da civilização moderna, em prol do coração, da primazia dos sentidos holisticamente conjugados? Como escutar esta escrita demasiadamente humana?
As palavras quase que se esgotam. A nossa linguagem talvez nada mais possa acrescentar ao Dizer do Poeta. Porém, aquém e além de todo o sofrimento, da desilusão ou do sentimento de uma certa impotência do pensamento e da acção para transformarem a realidade, a esperança ainda permanece no dolorido canto do Poeta, o grande “guerreiro solitário do poema”. A todo o momento pede socorro, confessando não aguentar mais o terrível peso do Mundo, revelando não saber exactamente quais os seus reais intentos, porque trespassado por um incómodo tremendo, em estado de permanente sobressalto.
A sua poesia incomoda. As suas cartas, também, sobretudo quando levantam a possibilidade da existência de uma outra forma de amar, inaudível, inexplicável, enredada nas franjas indeterminadas de uma qualquer escala cromática. Talvez não exista mais um corpo apropriado para um Amor assim, devastador, fulminante, completamente íntimo e arrebatador. No entanto, o corpo do Poeta mantém-se aí – e este “aí” é o desolador Mundo dos Homens –, atirado para as margens intermináveis da Solidão.
O Amor amarrota o corpo. Mesmo o corpo inspirado. Esmaga a alma. E, provavelmente, "Eros não pode ser belo". A expressão é, seguramente, local. A impossibilidade já vem dos gregos, amiúde revisitados por Rilke, na sua profícua mitologia, no seu puro modo de ser e de pensar poetante. Um pensar genuíno, cujas "belas arcadas construídas pelo espírito", assentam em precárias bases, em inconsistentes alicerces de madeira. Sobre elas habita o Poeta, eternamente enamorado, mensageiro de um peculiar sentimento de humanidade, que passa ao lado dos homens.
Em vão, tentou aguentar tão estranho e comum sentimento. No seio da sua amargura, foi salvo pelo Anjo, sublime criatura, reflectora de um certo grau de angústia, de uma extraordinária capacidade de captar "ultra-radiações" de infelicidade.
Envolto neste dilema existencial irreversível – em tudo coincidente com o conflito interno da sua própria escrita – só lhe restam dois caminhos, fatalmente paralelos: ou leva a sua Poesia até ao fim, ou reentra na sociedade comum dos Homens, reduzindo-se, tão-só, ao estatuto de um “Bom Poeta”.
Rilke, Orfeu. Ou, se preferirmos, Orfeu e Rilke. Assim sejam: Poetas cantores do Amor, do humano, do demasiado humano. Poetas perseguidos pela ideia de que ainda há lugar, neste Mundo incrível, para um outro modo do humano se dar, no seu fazer-se de Homem.
O Mundo? Que diremos dele? O Mundo urbano está cheio de Nada. A inspiração é volátil. O “Aberto”, doloroso e imprevisível, assoma nos momentos mais inesperados. A Solidão, é temida. A Guerra, abominável. Haverá um outro modo de estar disponível para o Poema? Uma outra forma de re-criar poeticamente o Mundo?
A resposta a estas questões, a simples, mas profunda meditação sobre o seu essencial intento, talvez nos permita correr o risco de procedermos a uma hermenêutica ainda mais depurada da Poesia rilkeana.
Cada poema de Rilke – seja qual for a temática a que se subordine ou a estilística que o incorpora – não é senão uma forma completa, perfeita, e até mesmo rigorosa, em todos os seus detalhes. É o resultado da fusão, sem mistura, que se opera genuinamente no interior da Linguagem. O elemento frásico, o ritmo, a musicalidade das palavras, meticulosamente escolhidas, estão tão próximos quanto possível do que é sentido. E o que é sentido do dito e do não dito, pressentificado nas entrelinhas não dissimuladas desta escrita em ininterrupta ebulição, redonda, inevitavelmente redonda, com princípio instituído, mas sem fim determinado.
A forma do poema surge do sopro do Coração, que vê muito mais do que o enigmático olho da razão; nasce da íntima relação com o “Aberto”, sentido na profundidade ilimitada dos seus indeléveis contornos. Os Poemas de Rilke! Pois…, os Poemas de Rilke: bodas ténues de contrários, a limite complementares, no lençol imenso onde se deitam as palavras, imperecíveis. «Aqui é tempo do dizível, aqui a sua pátria. / Fala e proclama. Mais do que nunca / perecem as coisas, as que se podem viver, pois / O que as substitui, tomando o seu lugar, é um fazer sem imagem.»
Algures, talvez num dos contos de «A História de Nosso Senhor», o Poeta havia imaginado Deus tremendamente zangado, ao confrontar-se com as suas mãos, inábeis e com o seu Verbo, impotente. O mesmo sentiu com o seu corpo. Não coube no Poema. E, em 29 de Dezembro de 1926, o Poema levou-o. Para onde? Não nos é permitido saber. Mas, levou-o. Hoje, esse mesmo Poema torna-o presente, eminentemente presente na sua ausência física.
A Arte do canto e da palavra. A Poesia e a Música. Em uníssono, cantam. Em “re-união”, caminham para o mesmo fim, “ex-traordinariamente” epifânico: o empenho total do Ser para a sua plena revelação.
É neste fogo do conhecimento absoluto, também o fogo ardente do Amor, que o Poeta se exalta e consome. Aí, nesse lugar recôndito, onde assoma, em silêncio, a nostalgia da Unidade, a derradeira e singular consonância entre a luz e a sombra, a plenitude ansiosamente desejada entre a presença e a ausência, a comunhão do particular e do universal, da singularidade e da pluralidade: «e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que os outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o seu silêncio (…)» .
É este o resultado da acção da cultura de massas, petrificadora o mundo interior. Da cultura do betão armado e do ferro, do anonimato antropológico, da intolerância pela identidade, da intransigência pela especificidade irredutível do indivíduo. E a isto, ainda, chamamos “cultura”? Como podemos fazer coincidir a essência deste conceito com o interesse pervertido em ocultar o Homem? Com essa postura colectiva, violadora da filantropia, erguida sob o traço “des-configurador” da natureza desta sombra de gente em que nos transformámos, incapazes de aflorar, sem véus, à luz translúcida do dia?
É justamente contra a ausência do Homem no homem, que a palavra do Poeta se insurge. É contra a inquietante estranheza de um ser desolado, completamente só, apenas entregue a si próprio, que a voz do Poeta se levanta. É contra a castração dos sentidos e a amputação do corpo, que o dizer do Poeta se rebela.
Assim é o Homem que habita, veladamente, em cada um de nós. Assim é o Poeta, Rilke ou Orfeu, em revolta pela incapacidade de manter a fidelidade à multiplicidade de rostos que em si se manifestam, a um tempo, presentes e ausentes. Mas, afinal, de que espécie de fidelidade padece o Poeta? A resposta que nos ocorre é tão simples, quanto complexa: da fidelidade ao Homem e à sua lúcida esperança de sê-lo, inteiramente; da fidelidade à Terra, onde mergulha as suas raízes mais fundas; da fidelidade à palavra que, no Homem, é capaz da verdade última do sangue, da derradeira verdade da alma.
Não sabemos, no entanto, se poderemos reiterar a tese: o futuro do homem é próprio homem . Mas que Futuro? Mas que Homem? «Ecce Homo». Literalmente, «eis o homem». «Ser como quem sou», «um espírito livre», responderia Nietzsche. Talvez seja este o mote dos poemas de Rainer Maria Rilke.
Isabel Rosete
Maio, 2008
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