quarta-feira, 3 de março de 2010


Nas “Montanhas do Coração”
Por Isabel Rosete


«”Levar a termo e dar à luz” – eis tudo. É preciso deixar cada impressão, cada gérmen de sentimento amadurecer em si, no obscuro, no inexprimível, no inconsciente – essas regiões fechadas ao entendimento.»


Movendo o nosso discurso pelas entranhas da obra poética e epistolar de Rainer Maria Rilke (1875-1926), pretendemos auscultar a mais íntima musicalidade que invade a escuta do Poeta Praga, cantor do canto da Terra, “em tempo de infortúnio”, na solidão do seu ser e do seu estar, em desassossego perpétuo.
Adoptou como Pátria a Poesia, o único lugar sagrado isento de fronteiras materiais, situado para além do tempo e do espaço fisicamente determinados, circunscrito apenas pelo Espírito Universal, que dialecticamente se move em todas as direcções. Com agilidade, voa o espírito do Poeta «para bem longe dos mórbidos miasmas:/ Tenta purificar-se no ar superior / E bebe, como um puro divino licor, / O branco fogo que enche os límpidos pedaços.»
Distancia-se dos Homens para encontrar a felicidade, a riqueza e a insondável grandeza da Natureza. Ama os animais e todas as coisas que a integram, como São Francisco, numa serenidade quase celestial. Acolhe-se nas sombrias noites das cidades modernas, tão densas quando a massa do Mundo. Refugia-se nas longas noites estreladas, contempladas do “Castelo de Duíno” ou da “Torre de Muzot”, que iluminam a sua alma solitária, dolorida pelo Amor, que não compreende.
Caminha, solitário, por este Mundo imenso, para que o barulho ensurdecedor das vozes humanas – sempre dispersas, sempre em “con-fusão” e rebelião por causas perdidas – não o impeçam de ouvir os “ex-traordinários” silêncios da Natureza, companheira de todas as horas, mãe, irmã e divina Mestra.
Só a solidão, o seu lar e ponto de apoio, lhe parece necessária. O seu crescimento é doloroso, como o das crianças. Triste, como a “ante-Primavera”. Caminhar, apenas consigo próprio, vaguear, durante algumas horas e não encontrar ninguém, eis ao estado existencial a que pretende chegar, acobertado pelo silêncio infinito do mundo interior, inaugurando “um novo começo, sinal, transformação”, tão-só através do “templo do ouvido” .
O Poeta manifesta, desde cedo, uma necessidade inata de transformação e de renovação, que o impelem, de modo imperativo, a vagar pelo Mundo, a abandonar a esposa, a família e os amigos. Escrever, compulsivamente, é o acordo que estabelece com a realidade, movido pela urgência de registar todos os pormenores sentidos, vistos ou escutados, para os transformar no testemunho vivo do seu peregrinar. Segue à parte das realidades sociais e humanas. Permanece só, na “solidão interior”, “por essência grande, pesada e difícil de suportar”, embora também fonte de crescimento, de aprendizagem e conhecimento.
Assim o reitera Rilke, convictamente, na sua condição de poeta errante e homem solitário: «o “homem de solidão” é ele próprio uma coisa submetida às profundas leis da vida. E quando um desses homens ergue o seu olhar, de madrugada ou ao cair da noite – essa hora cheia de realizações – e sente o que se está consumando, esse homem despoja-se de qualquer condição como se estivesse para morrer, se bem que só então entre na verdadeira vida.»
A todo o momento revela uma personalidade consciente e perseverante – apesar de frágil e inquieta, de uma hipersensibilidade indescritível – erguida sob a base da realização de um determinado efeito poético, presente em todos os temas sobre os quais reflecte: os Anjos, belos e terríveis ; a vida interior, na sua profundidade absoluta; as rosas, abertas, tão soltas e dispersas no seu desfolhar, inumeráveis flores, objectos inesgotáveis; a mudança, na «INSTÁVEL balança da vida / sempre a oscilar», «sempre em mutação” ; as fontes, bocas que doam e falam do uno puro e inextinguível, máscaras de mármore de onde jorra a água corrente; a vida e a morte, “opostos complementares”, umbilicalmente reunidos, enquanto partes integrantes do mesmo Todo, da Unidade primordial.
Rainer Maria Rilke é, ainda, um poeta da Morte, esse outro lado da vida que não vemos, que não está iluminado para nós; do silêncio, que «colocou para sempre o rosto humano / na balança das estrelas» e do qual espera “o magnifico presente de horas boas e belas” ; da angústia e da reclusão, estados perenes de criação que perpassam toda sua vida; do indizível, onde as palavras se esgotam e «a música sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina» ; das coisas visíveis e invisíveis, jamais dissimuladas em algum momento, porque pertencentes às grandes realidades da Vida, por si próprio desnudadas.
Porém, a Vida, na sua materialidade, não tem a mínima realidade. Só a vida interior é alvo das suas meditações. Só os fenómenos do subconsciente têm, efectivamente, um valor real. Só as ideias abstractas possuem, de facto, uma existência concreta.
Embora não se tenha vinculado a nenhuma escola ou tendência poético-literária, mesmo não tendo defendido, propriamente falando, nenhuma teoria ou sistema, Rilke conduz os seus leitores ao âmago das categorias estético-filosóficas do Modernismo. É, por excelência, um escritor modernista, apesar da sua poética se ter iniciado com composições de estilo impressionista, integradas na concepção decadentista, tão característica da sua época.
Envolto por esta ambiência, concebe as obras de arte como “seres vivos e secretos”, auras misteriosas do Ser cuja vida não tem terminus, contrariamente à nossa, que cessa em escassos momentos de efemeridade. Só os “bons poemas”, enquanto obras de arte assim consideradas – «uma obra de arte é boa quando nascida de uma necessidade», sendo apenas «a natureza da sua origem que a julga» – têm existência própria, autonomia ou independência determinada. Por isso, só os “bons poemas” são dignos de ultrapassar as fronteiras do perecimento, eternizando, mantendo vivo, o autor que os lavrou.
A obra de arte, em geral, e a Poesia, em particular, tornam-se um acto inexprimível racionalmente. Realizam-se, tão-só, numa região jamais atingida pela palavra: o Coração. A Poesia move-se nas franjas insondáveis do Mistério, sobre o qual não se tem qualquer espécie de controlo.
O Poeta, tal como todo o artista, é um ser privilegiado, porque escolhido pelo “Acaso” ou, quiçá, pelos “Espíritos”, que lhe incumbiram a missão de traduzir, em versos simples, a beleza do Universo. Ciente desta escolha, não pode demarcar-se de uma certa astúcia, nem dos domínios da Estética. Deve dissimular, previamente, os sinónimos, os arcaísmos ou os neologismos; preferir as palavras comuns às ex-traordinárias, para que possa garantir, em qualquer caso, o carácter de simplicidade da obra de arte. Só deste modo, a Arte poderá permanecer na memória do seu público, manter-se eternamente viva, mesmo depois da morte física do seu criador.
Urge interpretar as palavras de uma forma que extravase a hermenêutica tradicional, imergi-las numa outra ordem conceptual, próxima do “topos” da Criação. Urge libertar os espíritos das explanações pré-estabelecidas, lutar contra a linguagem convencionada, castradora da escrita originária, da criação aberta, do olhar microscópico, capaz de atravessar o opaco véu que oculta a realidade. Urge, por último, manter-se bem longe das palavras da crítica, apenas conducentes a mal-entendidos, e assim tornar claramente manifesto o Pensar, em vez do significar.
A sua orientação poética é delimitada pelo uso de imagens minuciosamente escolhidas, por um estilo espiritual único, irrepetível, que vai nascendo à medida que este delicado escultor das palavras procura os meios mais adequados para desenvolver a sua arte, os apetrechos mais apropriados para esculpir cada um dos seus versos.
Rilke acredita, quando da escrita se trata, na importância do trabalho quotidiano, na observação dos acontecimentos mais triviais , comuns a todos os seres humanos. Defende a escrita simples, translúcida e autêntica, que o ordinário possa fazer despoletar. Assim o declara, em tom de conselho, nas «Cartas a um Jovem Poeta»: «Fuja dos grandes assuntos em favor daqueles que o seu quotidiano lhe oferece. (...) Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objectos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes.»
Como esta explicação não lhe parece suficientemente satisfatória para a aprendizagem do “jovem poeta”, Franz Xaver Kappus , Rilke prossegue essa sua missão de conselheiro do Poema, de guia das palavras, pelas quais se exprime a intimidade do Sentir: «Só há um caminho», afirma peremptoriamente: «entre em si próprio e procure a necessidade que o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo:”Morreria se não me fosse possível escrever?”. Isto, sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta:”Sou realmente obrigado a escrever?”»
Se a experiência de Paris (1904 -1910) , amplamente reflectida nos «Cadernos de Malte Laurids Brigge» (1910) , assinala o início de uma nova etapa, aquela em que se incorporam ao mundo interior do Poeta sensações de terror, perante a inautenticidade da Vida e da Morte, e de estranheza, face ao Mundo, à beira do seu colapso total, em «As Elegias de Duíno» (1922-23) – escritas pela mesma altura de «Os Sonetos a Orfeu», o "seu canto de cisne", obra em que dá continuidade, num tom elegíaco-hínico, à herança de Hölderlin, – questionam-se as possibilidades de vivência do homem sem Deus, ao mesmo tempo que se vislumbra, na criação poética, o caminho da salvação.
Rainer Maria Rilke determina com a sua arte a nossa mundivisão, a nossa realidade e existencialidade epocal, no seio da efervescência de uma Europa culta onde se respira a atmosfera do “Expressionismo" alemão e do “Futurismo” italiano. Porém, em descrições expressionistas – tão características do estilo literário adoptado nos «Cadernos» – mergulha no silêncio, aprende a ver, e em si tudo penetra profundamente, apesar do devir, da constante metamorfose enteológica: «Mude embora o mundo / como as nuvens depressa, / a perfeição regressa / a um antes mais profundo.» Apercebe-se, então, de um estado interior jamais conhecido, a partir do qual tudo acontece e de onde tudo surgirá.
Pretende, apenas, ser um "poeta feliz de coração altivo”. Estar para além dos que inspiram piedade ou repugnância, mormente quando se sente esmagado pelos ruídos estridentes das vozes ensurdecedores, que pela cidade ecoam.
Só, irremediavelmente só, permanece o Poeta no colo incógnito das multidões avassaladoras da grande cidade, sem rosto próprio: «estava pesado de suor, e rodopiava dentro de mim uma dor estonteante, como se alguma coisa muito grande me circulasse no sangue, alguma coisa que me fizesse inchar as veias ao passar. E sentia ao mesmo tempo que o ar tinha acabado há muito e que eu apenas respirava exalações que os meus pulmões já não queriam.»
Sufoca, com a velocidade alucinogénia. Indigna-se, com o anonimato das gentes extraviadas. Recusa, a anulação do indivíduo imposto pelas massas indiferenciadas, mensageiras da podridão do Futuro, portadoras dos cheiros nauseabundos, responsáveis pela crueldade desenfreada. A Estrela dos seus olhos, não brilha mais. O Sol da sua natureza, esmorece, por entre as nuvens carregadas de um cinzento profundo. Resta-lhe, tão-só, guardar num lugar incógnito «a forma e a essência divina dos seus amores decompostos»
Sente, por isso, a imperiosa necessidade de tornar apreensível a Vida que, progressivamente, se vai recolhendo ao Invisível. Fá-lo, recorrendo a fenómenos e a imagens da sua infância – essa «preciosa e magnífica riqueza, esse tesouro de recordações» –, do seu ambiente parisiense ou das múltiplas leituras a que se dedicou, predominantemente orientadas pelo espírito de Baudelaire, autor das «Flores do Mal», o “poeta maldito”, talvez. Não obstante, lucidamente consciente de que «por entre os nossos vícios, galeria abjecta, / Existe um bem mais feio, mais cruel, imundo! / Que, mesmo recusando gestos ou clamores, / Facilmente faria da terra um destroço / E num simples bocejo engoliria o mundo; / é o tédio – Com o olhar chorando sem razão, / Vai fumando o cachimbo e sonha cadafalsos. / Conheces bem, leitor, tal monstro delicado, / – Hipócrita leitor, – meu igual, – meu irmão!»
Rainer Maria Rilke vive o período histórico das grandes inovações tecnológicas, do surgimento da electricidade, do cinema e do automóvel; do aparecimento e utilização desmedida das máquinas, triunfantes em todos os domínios onde toca a já insensível mão humana, “des-naturalizadoras” da Natureza e do Homem: «A máquina ameaça o alçado enquanto / ser no espírito e não no obedecer lhe apraz. / Não brilhe em mãos esplêndida um hesitante enquanto, / talha ela firme o edifício audaz. / Nunca se atrasa, pra lhe escaparmos uma vez / e ser dona de si, oleada, na fábrica em sossego. / é a vida, e ela acha ser quem melhor sabe e fez, / e ordena, cria e destrói com o mesmo apego.»
A actividade criadora do poeta não é, obviamente, independente desta nova reestruturação da História. Muito pelo contrário. Rilke interioriza a mundividência do seu (nosso) tempo, no lugar mais recôndito do seu coração. Revela-a, sem eufemismos. Muda a orientação da sua escuta, de regresso ao não maculado. Insurge-se contra a ambivalência do rumo seguido pelas revoluções técnico-científicas, em prol da defesa arrojada do não devassamento da Natureza e do Homem.
A mecanização e a Guerra atrofiam os ideais estetizantes dos autores modernistas. Ameaçados pelo desencanto e pelo tédio, inclinam-se para um misticismo exaltado, para a mostração desse sentimento de niilismo, de absurdo, de ausência de sentido da Existência, que o Poeta das «Elegias» tão bem conhece.
Contrariamente à posição proferida por Marinetti, no seu «Manifesto da Literatura Futurista», as máquinas não são, para Rilke, a expressão máxima da actividade artística, nem a “Revolução Industrial” a manifestação primorosa da realidade então vivenciada. Esta postura leva-o a rejeitar a tese que faz da Razão a grande salvadora e o único meio possível de redenção de todos os males. No seu lugar, coloca o coração, cuja linguagem e sentido são capazes de transmitir as mais fabulosas e ex-traordinárias experiências da Humanidade. Os cânones retóricos que definham a linguagem são, de igual modo, rejeitados. A linguagem natural, a do Poeta, que contém em si o poder evocador do som das palavras originais, é a única que importa.
Mais do que aos sentimentos, Rilke dirige-se aos sentidos, em detrimento do racionalismo exacerbado e inconsequente dos “Tempos Modernos” . Deseja obter, unicamente, o refinamento estético, o exotismo, o prazer da palavra e dos sons dela nascidos. Apenas com «palavras e gestos temos arte / de ir captando ao mundo» o que ele nos esconde, na sua pobreza ou na sua miséria, na sua sublimidade ou na sua vileza ou, simplesmente, na sua parte “mais fraca e perigosa” .
A sua missão, enquanto Poeta, é “celebrar” – «Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar,» – os sons virgens da Natureza, da Terra, e de todos os seus elementos, naturalmente integrados no círculo órfico. Por si próprios falam da Vida e da Morte, na sua perfeita unidade, na sua comunhão absoluta: os frutos , as flores , as rosas (pelo poeta eleitas, entre todas as espécies florícolas), os bichos, as árvores, os pássaros .
Rilke aceita esta missão como uma dádiva divina, como um mandado, mesmo quando percorre por «caminhos que não conduzem a parte alguma, / algures, entre dois prados; / que diríamos que, com arte, / foram desviados da rosa-dos-ventos, / caminhos que, muitas vezes, não/ têm à sua frente nada mais / que não seja o tempo em que se está, / e o puro espaço existente.»
“Erguido como uma dádiva”, sobre as “montanhas do coração”, “prás mãos abertas“ se liberta este Poeta europeu de dimensão universal. Escuta a Terra “completa e bela, quente como o pão». Observa as “rosáceas de luz” com um “excesso de claridade” que, ofuscadamente, domina os trilhos dos caminhos da vida, nem sempre conscientemente determinados . Move o seu olhar pelas paisagens desertas, ainda não maculadas pelo poder devastador das máquinas. Por último, num derradeiro grito de salvação do originário, canta, de novo, reiteradamente, a «terra silente onde nem os profetas falam, / terra que prepara o seu vinho; / onde as colheitas cheiram ainda a génesis, / não temendo que se desfaça. / Terra por de mais altiva para aspirar ao que transforma, / que, obedecendo ao estio, / à imagem do olmo e da nogueira, parece / feliz com o que não muda. / Terra em que só quase as águas trazem novas, / infiltrando, por entre a aspereza das tuas consoantes / e claridade das vogais que lhe pertencem.»
Neste contexto nasce a simbiose da escrita rilkeana com a pintura de Cézanne e de Böcklin, o diálogo estabelecido pela sua Poesia com outras linguagens artísticas, a combinação ecléctica de linguagens e de símbolos, importadas de outras formas da Arte se dar. Em «Os Sonetos a Orfeu», para citar apenas um exemplo desta aliança, a linguagem da Música e da Poesia relacionam-se intimamente. Dão-se numa plena fusão semântica, quer enquanto modos complementares de um mesmo Dizer, quer como formas de inteligibilidade do mundo interior, onde eleva, numa fala indizível, o Amor, terrivelmente despedaçado pelo Destino, implacável, que conduz todas as coisas ao seu próprio fim, independentemente das escolhas humanas.
Tal como Nietzsche, Rilke traz-nos a melancolia de uma alma estilhaçada. Tão estilhaçada quanto um espelho, partido em mil pedaços, pela dor do Amor. A metáfora do espelho evoca Narciso, na reflexologia do seu Ego. Denota a terrível incógnita do ser e do parecer ser, do oculto e do des-velado, da fidelidade ou infidelidade dos contornos da figura nele representados. Os espelhos guardam, no seu vão, todos os reflexos. Da sua essência nada sabemos. Nunca ninguém poderá explicá-los. «Como os furos do crivo”, são “a ausência do tempo a preencher cada intervalo». Porém, «a mais bela de todas as figuras / ficará lá no fundo, até nas faces carregadas/romper claro o narciso em sua nitidez.»
Depois, vêm as Rosas. Sempre as Rosas! Símbolos deste sentimento na duplicidade da sua significação: por um lado, a veludez e a suavidade das pétalas; por outro, a agressividade e a violência dos seus espinhos. À semelhança do Amor, um dia, também desfloram. No chão ressequido, caiem as suas pétalas, quando já murchas e encarquilhadas. Tornam-se pó. Juntam-se à Terra, tal como o Amor desfeito, em lágrimas de amargura, que o coração jamais pode suportar.
Enquanto viajante eternamente solitário pelas mais diversas paragens do Mundo, por onde ainda paira o seu espírito infinitamente sensível e perscrutador, Rilke procura outras culturas e, sobretudo, um outro sentido para a Existência, posto em causa pelos massacres da Guerra. Vive intensamente cada momento do seu estar-aí, como se fosse o último, consumido pelos caminhos da Vida adversa à plena realização dos seres puros. Em cada lugar, procura um outro sentido que legitime o simples facto de ele próprio existir, apátrida, como cidadão do Mundo.
Rainer Maria Rilke é o atleta dos sentidos. Do ver e, sobretudo, do escutar. É o gladiador do silêncio. Desse trágico e imenso silêncio do Mundo, anunciador de um outro começo, sinal de renovação. O seu corpo não dobra perante um instrumento ou uma imagem. Apenas diante do Destino, quando impelido a sentir o silêncio universal, sempre que extravasa o ruído incómodo das coisas mais mesquinhas.
Permanece, errante, para além da musicalidade das palavras sentidas e intimamente vividas, antes da escrita. O esplendor do canto de cada vogal ou de cada consoante diz, nomeia, traz à luz a realidade na sua existência própria, de uma forma tão sublime e radiosa, que nos transporta para a sua interioridade. Afinal, “cantar é existir”. “Cantar é na verdade um outro alento” . Assim se determina a dimensão ontológica do canto, o poder de dar ser pela palavra poética, tão criadora quanto Verbo de Deus.
É pelo canto inaugural das palavras de origem que Rilke nos mostra, envolto na nascente musical de «Os Sonetos a Orfeu», essa outra possibilidade de dizer o Mundo, O Amor, os Homens, os Anjos, a Natureza e a Terra, de onde tudo brota como se de um fundo inesgotável se tratasse. A Terra tudo doa, sem nada pedir em troca. Quando «a Primavera regressa» em «tudo a terra é uma criança». Está aí, tão presente quanto ausente. Por todos os lugares se espalha os seus membros, sempre disponíveis para nós. Livre, feliz, alegre, no seu jogo puro com os infantes, abre o espaço da Existência para que todas as coisas se perpetuem no círculo órfico.
Estupefacto e vigilante, o Poeta sente que o seu mistério é criar. Vê a Natureza com os olhos dotados da mais pura clarividência. Escuta o seu pulsar, no “templo do ouvido”, nunca deixando escapar o seu apelo. Do peito arranca o seu “rubro coração”. À Natureza o doa. «Para o céu, onde um esplêndido trono vislumbra, / O sereno poeta, ergue os braços piedosos, / E os amplos clarões do seu espírito lúcido / ocultam-lhe o aspecto dos povos furiosos.»
Torna-se "um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior". Sente-o, não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com os quais conhecemos a realidade, num esforço constante para tornar a vida real, absolutamente irreal na sua realidade directa.
Faz da sua Poesia uma arte casada com o Pensamento, um meio de realização, sem mácula, da Realidade. Impregna-a da catártica música de Orfeu, capaz de tudo mover e comover, porque magicamente encanta, não obstante a constância do sofrimento. Para esta meta deveria tender todo o esforço verdadeiramente humano – amiúde perpassado pela superfluidade animal, indiferente e sem a preocupação de exprimir o Mundo – para que a Realidade se torne mais viva e mais intensa.
Como esclarece Fernando Pessoa, pela mão de Bernardo Soares – contemporâneo de Rilke, tão social e tão intimamente Poeta – «os campos são mais verdes no dizer-se do que o seu verdor. As flores se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite. Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. (…) Temos pois de conservar (tudo) em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.» .
A metáfora do canto da Terra é correlativa da metáfora da audição. Tal como o canto, o ouvir também pressupõe criação, o fazer brotar originariamente, o trazer à luz na clarividência de um dia radioso, o âmago dos entes que nos olham, e apelam para que os preservemos das armadilhas da tecnologia moderna, aniquiladora da pureza das coisas virgens, responsável pela desvirtuação progressiva da integridade originária do seu canto. Num ritmo cronologicamente atroz, desordena o natural curso da Vida, o seu desenvolvimento, construção e crescimento.
Não obstante a existência, quiçá inevitável, do vertiginoso mundo da ciência e tecnologia modernas, no mais profundo dos abismos, confessa o Poeta, «para nós existir tem ainda encanto; ainda em cem / lugares é origem. Jogo de forças puras e patentes, / não as toca quem não admira e de joelhos não se inclina» .
Orfeu – revisitado e consagrado por Rilke, precisamente em «Os Sonetos a Orfeu» – surge, neste contexto, como aquele que é capaz de “celebrar”, o Amor e a Terra, pela magia do canto. Encarna, por excelência, a missão inaugural do Poeta: penetrar nas “montanhas do coração”, exaltando o poder dos sentidos e do sentir; tornar audíveis os sons primordiais, abafados pelos insuportáveis ruídos das máquinas; fazer escutar os ouvidos desatentos das criaturas dispersas, desnorteadas no anonimato do colectivo, onde perderam, para sempre, a sua individualidade. É do "semi-deus" essa magistral e rara qualidade.
Sendo dos "dois reinos", o da Vida e o da Morte, Orfeu está ciente de que o círculo do Ser se completa com a Morte, que a si tudo chama da forma mais arrebatadora. O deus da lira dourada de Apolo, qual arauto da Música, do Canto e da Poesia, tudo atravessa intima e profundamente, através das “orelhas da Terra”, até atingir o âmago do Ser.
Dotado dessa singular experiência ontológica que é escutar, des-vela o "ante-cantar" como essencialmente Uno. Só o silêncio dos mortos, no terrível reino de Hades onde a vida terrena acaba, pode ser seu par. A Humanidade, afastada do circuito órfico, não possui mais o entendimento desta cumplicidade, da circularidade do "vasto círculo", da imensa esfericidade do Mundo, onde tudo se recolhe. De ouvidos surdos, torna-se incapaz de cantar o canto da Terra, de escutar o seu grito de alerta, os seus apelos constantes, sempre que o perigo se aproxima.
Orfeu, o trácio, em virtude da sua pureza sexual, das suas faculdades musicais e do seu dom de profecia – mesmo após a morte – é o patrono dos ritos e das formas rituais da Vida. Tem o dom da catarsis, da purificação, do poder salvífico da música e da palavra. Vive a circularidade da existência, ciente da reencarnação das almas e da sua sobrevivência eterna, desde que conservadas de uma forma absolutamente pura.
Orfeu é o Profeta. O redentor pela Arte, a única via possibilitadora da remição do humano. Esta ideia perpassa a concepção artística rilkeana, expressa por esta mítica e lendária figura. Feita de concentração, de disciplina interior e de isolamento, a Arte é acompanhada por uma forma peculiar de ver e de escutar: aquela que é própria dos seres sensíveis, os Poetas.
O homem não é só visão, mas também, e quiçá principalmente, escuta, audição. Por isso, a Arte, produto exclusivo do obrar humano não é, para Rainer Maria Rilke, nem mimésis, nem uma mera escolha selectiva de alguns aspectos do Mundo. Mas, por essência, a forma integral da sua plena transformação. Sobre esta base vão surgindo, progressivamente, os elementos centrais da cosmogonia rilkeana: o espaço interior do Mundo, em tudo idêntico à experiência dos pássaros; o “Aberto”, lugar angélico; a voz que na paisagem cicia o sentido; o desejável equilíbrio perfeito entre esta, eterna, e o efémero corpo humano.
O Homem é a consciência da paisagem. A sua boca, por ela fala. Os seus ouvidos escutam, no silêncio do chão sagrado, os sons primeiros, estranhos à civilização industrial dos estridentes ruídos, da poluição sonora, que fere os delicados tímpanos do Poeta. O seu nariz respira os salutares aromas da Terra ainda casta, algures, embora cada vez mais ameaçada pelos insuportáveis odores das máquinas. Perante nada se comovem ou retraiem, esses motores inconscientes do progresso. Assim se mostra a arte deste Poeta modernista, abalado pela monstruosidade da Guerra, desencantado com o mundo ingrato, ferido por uma humanidade não mais sensível a essa inquietante estranheza inicial, ao momento intemporal da criação pura.
Rilke, um escritor da transição do século. Sem dúvida. Preciso e visual, continuamente movido por uma escuta atenta, pela constante intersecção dos sentidos depostos sobre as “montanhas do coração”, caminha rumo à antropomorfização da Natureza que assume, em toda a sua obra, um nível de reacções genuinamente humanas, de suave tonalidade onírica, embora sem o recurso a diligencias fantásticas ou deslumbrantes: «Vejo, desde algum tempo / como tudo se modifica. / Algo se ergue e replica / e mata e traz o sofrimento. / Deitamo-nos sem cessar entre / as flores, frente ao céu. / Exposto sobre as montanhas do / coração. Olha como aí é mínima, / olha: essa última estação das / palavras, e, mais alto, também mínimo, / ainda um último reduto do sentir. / Consegues vê-lo?»
Os seres vivos, enquanto elementos da Natureza, participam do seu inesgotável encantamento. «Stimmung», o ambiente na sua nudez essencial, é o efeito que cada um dos seus poemas faz despoletar, de uma forma naturalmente sublime. A metamorfose da Natureza agita o seu canto por intermédio de uma espécie de contemplação objectiva e serena, mesmo quando nos deparamos com a preocupação do Poeta pela sua salvaguarda imperativa.
Para além dos efeitos aliterantes e onomatopaicos, sentimos na sua escrita o encanto do jogo vocálico, típico dos simbolistas franceses. A ausência de preciosismos formais não tem lugar na sua obra. E a poetização de cada assunto vive da força das imagens fecundadas, tão-somente, pela flexibilidade de um ritmo normalmente livre.
Rilke procede, com uma certa frequência, à poetização do real: em vez da exposição lírica dos sentimentos, elege a poesia dos objectos em si mesmo considerados, visualizando-os a partir de um ângulo mais pessoal e descritivo. Com novos gestos linguísticos, impregnados de uma plasticidade quase indescritível, descreve-os até que a sua imagem se complete, até que a sua força anímica se manifeste.
A instilação visual do Poeta, tanto quanto a auditiva, desnuda a intimidade invisível das coisas. Sempre que as descreve, revela-as na sua autenticidade iluminatória, jamais captada pelo olhar do comum dos mortais, bicéfalos. No entanto, essa descrição não é, propriamente falando, objectiva, isto é, não parte da observação do Eu para o objecto, mas da auscultação do seu interior para e sobre o mundo.
Assim o esclarece Rilke, nas «Cartas a um Jovem Poeta»: «meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida brota; na sua fonte encontrará a resposta à pergunta “Devo criar?” Aceite essa resposta, tal como lhe é dada, sem tentar interpretá-la. Talvez chegue à conclusão de que a arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. Porque o criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e na Natureza à qual toda a sua vida é devotada.»
A ânsia do “Belo” e do “Aberto” realizam-se numa ambiência decadente, acentuada de uma forma particularmente estimulante, em virtude do uso reiterado da conotação negativa dos adjectivos. O desejo do místico brota como uma «busca incessante de Deus». A encenação mitológica é, apenas, um mero pretexto convencional. E a mitificação do Amor, dá-se por uma via mais objectiva, tanto quanto a reflexão sobre a Morte.
As frequentes considerações sobre a inevitabilidade da Morte, ausentes do sombrio fatalismo da mística cristã, são uma constante em Rilke. Na riqueza espiritual do Homem, na grandeza que o Mundo oferece, a Morte é um facto tão lógico como a própria vida. Requerer uma relação individual à margem de qualquer espécie de massificação. Na sua tradução poética, naturalmente vital e recorrente, ergue-se uma estrutura concêntrica em derredor do símbolo do fruto que amadurece e cai. Assim é a Morte no seio da Vida, que o seu círculo perfeito completa.
A unidade da Vida e da Morte é, claramente exposta, em os «Sonetos a Orfeu», onde vemos ressurgir o “topos” clássico da natureza divina do Poeta. Ao conquistar a glória terrena, opera o milagre da imortalidade na sua relação com o divino, sem nunca quebrar os estreitos laços que mantém com a Natureza.
Independentemente do dito e do não dito neste ensaio cabe-nos, ainda, perguntar: como olhar, hoje, – nestes “tempos de infortúnio”, do vazio das palavras e do descrédito da salvação – para a poesia de Rainer Maria Rilke, erguida sobre as “montanhas do coração? Como perspectivar a obra de um homem que pretere a razão, qual ”monstro sagrado” da civilização moderna, em prol do coração, da primazia dos sentidos holisticamente conjugados? Como escutar esta escrita demasiadamente humana?
As palavras quase que se esgotam. A nossa linguagem talvez nada mais possa acrescentar ao Dizer do Poeta. Porém, aquém e além de todo o sofrimento, da desilusão ou do sentimento de uma certa impotência do pensamento e da acção para transformarem a realidade, a esperança ainda permanece no dolorido canto do Poeta, o grande “guerreiro solitário do poema”. A todo o momento pede socorro, confessando não aguentar mais o terrível peso do Mundo, revelando não saber exactamente quais os seus reais intentos, porque trespassado por um incómodo tremendo, em estado de permanente sobressalto.
A sua poesia incomoda. As suas cartas, também, sobretudo quando levantam a possibilidade da existência de uma outra forma de amar, inaudível, inexplicável, enredada nas franjas indeterminadas de uma qualquer escala cromática. Talvez não exista mais um corpo apropriado para um Amor assim, devastador, fulminante, completamente íntimo e arrebatador. No entanto, o corpo do Poeta mantém-se aí – e este “aí” é o desolador Mundo dos Homens –, atirado para as margens intermináveis da Solidão.
O Amor amarrota o corpo. Mesmo o corpo inspirado. Esmaga a alma. E, provavelmente, "Eros não pode ser belo". A expressão é, seguramente, local. A impossibilidade já vem dos gregos, amiúde revisitados por Rilke, na sua profícua mitologia, no seu puro modo de ser e de pensar poetante. Um pensar genuíno, cujas "belas arcadas construídas pelo espírito", assentam em precárias bases, em inconsistentes alicerces de madeira. Sobre elas habita o Poeta, eternamente enamorado, mensageiro de um peculiar sentimento de humanidade, que passa ao lado dos homens.
Em vão, tentou aguentar tão estranho e comum sentimento. No seio da sua amargura, foi salvo pelo Anjo, sublime criatura, reflectora de um certo grau de angústia, de uma extraordinária capacidade de captar "ultra-radiações" de infelicidade.
Envolto neste dilema existencial irreversível – em tudo coincidente com o conflito interno da sua própria escrita – só lhe restam dois caminhos, fatalmente paralelos: ou leva a sua Poesia até ao fim, ou reentra na sociedade comum dos Homens, reduzindo-se, tão-só, ao estatuto de um “Bom Poeta”.
Rilke, Orfeu. Ou, se preferirmos, Orfeu e Rilke. Assim sejam: Poetas cantores do Amor, do humano, do demasiado humano. Poetas perseguidos pela ideia de que ainda há lugar, neste Mundo incrível, para um outro modo do humano se dar, no seu fazer-se de Homem.
O Mundo? Que diremos dele? O Mundo urbano está cheio de Nada. A inspiração é volátil. O “Aberto”, doloroso e imprevisível, assoma nos momentos mais inesperados. A Solidão, é temida. A Guerra, abominável. Haverá um outro modo de estar disponível para o Poema? Uma outra forma de re-criar poeticamente o Mundo?
A resposta a estas questões, a simples, mas profunda meditação sobre o seu essencial intento, talvez nos permita correr o risco de procedermos a uma hermenêutica ainda mais depurada da Poesia rilkeana.
Cada poema de Rilke – seja qual for a temática a que se subordine ou a estilística que o incorpora – não é senão uma forma completa, perfeita, e até mesmo rigorosa, em todos os seus detalhes. É o resultado da fusão, sem mistura, que se opera genuinamente no interior da Linguagem. O elemento frásico, o ritmo, a musicalidade das palavras, meticulosamente escolhidas, estão tão próximos quanto possível do que é sentido. E o que é sentido do dito e do não dito, pressentificado nas entrelinhas não dissimuladas desta escrita em ininterrupta ebulição, redonda, inevitavelmente redonda, com princípio instituído, mas sem fim determinado.
A forma do poema surge do sopro do Coração, que vê muito mais do que o enigmático olho da razão; nasce da íntima relação com o “Aberto”, sentido na profundidade ilimitada dos seus indeléveis contornos. Os Poemas de Rilke! Pois…, os Poemas de Rilke: bodas ténues de contrários, a limite complementares, no lençol imenso onde se deitam as palavras, imperecíveis. «Aqui é tempo do dizível, aqui a sua pátria. / Fala e proclama. Mais do que nunca / perecem as coisas, as que se podem viver, pois / O que as substitui, tomando o seu lugar, é um fazer sem imagem.»
Algures, talvez num dos contos de «A História de Nosso Senhor», o Poeta havia imaginado Deus tremendamente zangado, ao confrontar-se com as suas mãos, inábeis e com o seu Verbo, impotente. O mesmo sentiu com o seu corpo. Não coube no Poema. E, em 29 de Dezembro de 1926, o Poema levou-o. Para onde? Não nos é permitido saber. Mas, levou-o. Hoje, esse mesmo Poema torna-o presente, eminentemente presente na sua ausência física.
A Arte do canto e da palavra. A Poesia e a Música. Em uníssono, cantam. Em “re-união”, caminham para o mesmo fim, “ex-traordinariamente” epifânico: o empenho total do Ser para a sua plena revelação.
É neste fogo do conhecimento absoluto, também o fogo ardente do Amor, que o Poeta se exalta e consome. Aí, nesse lugar recôndito, onde assoma, em silêncio, a nostalgia da Unidade, a derradeira e singular consonância entre a luz e a sombra, a plenitude ansiosamente desejada entre a presença e a ausência, a comunhão do particular e do universal, da singularidade e da pluralidade: «e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que os outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o seu silêncio (…)» .
É este o resultado da acção da cultura de massas, petrificadora o mundo interior. Da cultura do betão armado e do ferro, do anonimato antropológico, da intolerância pela identidade, da intransigência pela especificidade irredutível do indivíduo. E a isto, ainda, chamamos “cultura”? Como podemos fazer coincidir a essência deste conceito com o interesse pervertido em ocultar o Homem? Com essa postura colectiva, violadora da filantropia, erguida sob o traço “des-configurador” da natureza desta sombra de gente em que nos transformámos, incapazes de aflorar, sem véus, à luz translúcida do dia?
É justamente contra a ausência do Homem no homem, que a palavra do Poeta se insurge. É contra a inquietante estranheza de um ser desolado, completamente só, apenas entregue a si próprio, que a voz do Poeta se levanta. É contra a castração dos sentidos e a amputação do corpo, que o dizer do Poeta se rebela.
Assim é o Homem que habita, veladamente, em cada um de nós. Assim é o Poeta, Rilke ou Orfeu, em revolta pela incapacidade de manter a fidelidade à multiplicidade de rostos que em si se manifestam, a um tempo, presentes e ausentes. Mas, afinal, de que espécie de fidelidade padece o Poeta? A resposta que nos ocorre é tão simples, quanto complexa: da fidelidade ao Homem e à sua lúcida esperança de sê-lo, inteiramente; da fidelidade à Terra, onde mergulha as suas raízes mais fundas; da fidelidade à palavra que, no Homem, é capaz da verdade última do sangue, da derradeira verdade da alma.
Não sabemos, no entanto, se poderemos reiterar a tese: o futuro do homem é próprio homem . Mas que Futuro? Mas que Homem? «Ecce Homo». Literalmente, «eis o homem». «Ser como quem sou», «um espírito livre», responderia Nietzsche. Talvez seja este o mote dos poemas de Rainer Maria Rilke.



Isabel Rosete
Maio, 2008

RILKE, ORFEU E A IMAGEM DA INTERIORIZAÇÃO DO HUMANO
Por: Isabel Rosete


Nascido em Praga, em 1875, Rainer Maria Rilke é checo de nascimento, austríaco por vocação, mas sem Pátria territorialmente determinada, sem Nação que seja realmente a sua.
É um viandante, como o Zaratustra de Nietzsche. Percorre as múltiplas partes do mundo, desde a Europa até ao Norte de África, sempre acompanhado pelo espírito errante de quem não tem mais domicílio determinado. Aí permanece, na infinitude espacial e temporal de todos os territórios humanos, sempre atento aos mais ínfimos pormenores que a sua longa vista alcança, aos mais recônditos sons que o seu aguçado ouvido consegue alcançar.
Adopta como sua Pátria a Poesia, esse vasto universo sem fronteiras materiais, extravasador de todos os contornos, apenas limitados pelo Espírito invariavelmente perseguido pela “grande solidão”, a única postura a que obedece, onde quer que se tenha situado temporariamente.
Mantém-se acompanhado pela Natureza, a grande mestra que tudo pode ensinar. Morreria se não lhe fosse mais permitido escrever sobre ela. A escrita. Sempre a escrita. Essa necessidade intrínseca à sua alma, infinitamente só, mas que tudo faz jorrar, de uma profunda interioridade, como uma fonte “na hora mais silenciosa da noite”.
Rilke escreve sobre as suas tristezas e os seus desejos. Escreve sobre os múltiplos e diversificados pensamentos que lhe afloram, sejam eles de vida ou de morte, de alegria ou do mais drástico e atroz sofrimento. Escreve conduzido pela convicção de que é preciso “viver tudo”, e assim amar as dúvidas e as interrogações, apesar do indizível, do inexprimível e do inexplicável acompanharem sempre o seu horizonte de pensamento, tão apegado aos maravilhosos e extraordinários silêncios da Natureza.
Sempre solitário, permanece o Poeta, para que os ruídos da voz humana não o impeçam de escutar a harmonia musical, a musicalidade inerente às coisas terrestres e celestes, ditas pelos homens, pelos Anjos, pelos Deuses.
Entre estes, Orfeu é o representante supremo. Figura profética, vagueante entre os “dois reinos”. Tudo comove e petrifica. Confere a eterna serenidade e harmonia a todos os entes com o som da sua divina e mágica lira, nele sempre ancorada como símbolo primeiro da metáfora da audição – que percorre obsessivamente Os Sonetos a Orfeu – do primogénito canto da Terra que, estando livre e sendo, em si mesma, uma dádiva, um dom, se dá aos “jogos felizes com as crianças”, sempre alegre como uma criança.
A Terra faz despoletar e florir todas as coisas, quando a eterna Primavera regressa. “A terra doa”, afirma Rilke, em Os Sonetos a Orfeu , mesmo apesar de esgotada e magoada, de manipulada pelo “Homem dominador” que a tudo lança as suas redes, as suas armadilhas, esse que não é mais fiel à Terra como as flores que “murcham arrependidas”.
Orfeu é o ícone da autêntica escuta que há muito perdemos. Ainda conserva a virgindade dessa escuta inicial que lhe permite ouvir “os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera (...)” .
Nada impede ao “deus audível” – que espanta, compreende, celebra e “canta dizível” – a escuta dos extraordinários silêncios da Terra, de cantar, com as mais belas melodias, as suas cores e as suas tonalidades mais diversificadas e características, eminentes nos negros arbustos, na folhagem envolta por um ”castanho futuro”, presentes ao longo de um “caminho poeirento”, onde o “verde desliza para o cinzento – / um cinza que, embora dominado, / contém em si tons de azul e prata”.
Um caminho que, numa outra dimensão, se mostra “sobre um pano de fundo negro e esverdeado”, onde, um pouco acima, encontramos “um salgueiro”, “ao vento / o escondido claro da sua folhagem” e ao “lado um verde abstracto, um verde pálido e visionário” que “embrulha de abandono / uma torre desagregada pelo tempo”.
A figura de Orfeu é, para Rilke, a inevitável encarnação daquele que é capaz de exaltar, de conduzir ao seu esplendor, o sentido dos sons que autenticamente escuta.
Essa qualidade é exclusiva de Orfeu, do Poeta, que sendo “dos dois reinos”, sabe que o círculo do ser de cada ente se completa com a morte, que a si tudo chama, que concede a cada um o mais veraz conhecimento de si próprio: “Só a morte em silêncio conhece o que nós somos”. Nós, essa “raça de milénios”, “nós, mães e pais / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais” .
Ah! A morte, qual limiar absoluto do auto-conhecimento; qual estado supremo da vida interior; qual ponto único e irredutível que conduz o Poeta à via da sua interiorização plena.
Rilke, o solitário guerreiro do poema, amiúde acusado de ter cultivado, de si próprio, uma imagem mística, escreve, em 20 de Junho de 1914, um “estranho poema”, espontaneamente intitulado Wendung, representante, segundo o próprio poeta, do ponto de mudança da sua própria existencialidade, garantida sempre que pega na pena para voltar a escrever, para voltar, ainda, a viver outra vez.
Aqui, onde a escrita revela e des-vela a alma mortificada, anuncia-se a necessidade de uma viragem completa de uma personalidade tão marcada pela Guerra, esse estado de ser desviante da Humanidade que conduz indignamente as coisas ao seu próprio, mas inapropriado fim.
Urge, o poeta manifesta-o, uma viragem feita de fora para dentro, e, por isso, o que até ao limiar do derradeiro momento havia sido tarefa do olhar, passa a ser Herz-WerK, quer dizer, “obra do coração”: “Porque, olha, há limites para o ver, / e o mundo re-contemplado / quer dar frutos de amor. / A obra da vista está já feita, / fazei agora obra-de-coração / nas imagens dentro de ti, / presas dentro de ti” .
O ponto de viragem impõe-se, de facto, ao poeta. E o caminho que da interioridade conduz à grandeza, passa pelo exterior, há quanto tempo já contemplado, intimamente frustrado e suplicante ao fundo do olhar, sempre envolto em contornos pouco nítidos, sob a aura de um coração sensível e de um corpo dolorosamente atormentado, que espera, no quarto da estalagem, um leito de suplício redentor .
Rilke passeara os olhos e o corpo doente pela exterioridade do mundo, ávido de impressões exógenas, buscadas em viagens pela Escandinávia, Itália, Espanha ou Egipto, embora receante de jamais poder fechar-se sobre a sua própria concha. Torna-se irremediavelmente voltado para fora. Enlaçado por uma espécie de disposição a que chama “bem-estar”, o encontrar-se numa casta de neutralidade corporal significante do não-tomar-partido do corpo, ao mesmo tempo que uma força se sobreleva e toma conta do seu interior deixando, por alguns momentos, perder no coração geral, o próprio coração, em pleno espaço de combate que a Guerra naturalmente fazia perdurar e que não é mais preciso ver, ou até mesmo lembrar.
Tal como Orfeu, Rilke sente-se desejoso de realizar a grande obra de libertação das imagens da morte presas dentro de si mesmo. Expulsa, por isso, toda a imposição exterior para re-adquirir o ritmo pessoal, não obstante a tragédia envolvente dos que partiam e dos que ficavam, nessas terríveis e abomináveis batalhas mortíferas, atormentadoras da tranquila disposição da alma do poeta que, no entanto, encerra em si a certeza obscura e íntima de que, na terrível montanha «haverá uma força a mais, e o coração tornar-se-nos-á mais forte».
Só então poderá sentir, de novo, o que há de mais sagrado e de mais puro. «Tão grande e tão sem sentido, afirma Paulo Quintela, que o morrer tranquilo e natural, aquele resvalar, insensível ou doloroso, para a morte própria que lhe era tão querida, é portador de consolação inefável. É o que diz a 4 de Outubro ao Príncipe de Thurn e Taxis, na carta de pêsames pela morte da mãe: ‘Talvez seja uma espécie de consolação involuntária que, nestes dias da morte elevada ao monstruoso, o dolorosamente natural se cumpra como que com natureza mais suave –» .
É o sentir e a meditação sobre a enormidade da matança sem sentido que perturba o espírito de Rilke, apesar de tudo apegado aos homens, cuja palavra, porém, lhe inspira medo e desconfiança: «Tenho tal medo da palavra dos homens / Eles exprimem tudo com tanta clareza: / (...) E também me amedronta o seu sentido e o seu jogo / com o escárnio, / eles sabem tudo o que há-de ser e já foi;/(...) Hei-de advertir e opor-me: Ficai de largo! / Gosto tanto de ouvir cantar as coisas. / Mal lhes tocais ficam hirtas e mudas. / Matais-me todas as coisas.” .
Os sonhos do futuro não deixam de despoletar no poeta, apesar de todas as atrocidades existenciais e dos ventos que sopram em sentido contrário. Emerge, amiúde, a esperança de que uma palavra de compreensão e de humanidade toque os corações selvagens dos fazedores da Guerra, dos provocadores das mortes inocentes, até que a guerra, esgotada, rua sobre si mesma e, então, se abram novas portas para que o futuro possa começar de novo. Mas quando? Nesta época de indigência, de infortúnio, como poderemos esperar a redenção, a salvação?
Contrariamente a Orfeu, o nosso olhar deve ser expectante. Porém, nunca os nossos olhos, tal como os dele, se poderão voltar para trás. Ainda valerá a pena caminhar de cabeça erguida, de olhos voltados para o que está, para o que há-de vir, para o infinito?
Talvez Rilke desejasse, como o “deus cantor”, descer ao reino dos mortos, morrer como os outros morreram, esses que não foram forçados a ver o horrendo e o monstruoso espectáculo que assomou o ínfimo espaço que ocupamos neste Universo, errante, que já não conseguimos mais habitar poeticamente.
É no seio desta atmosfera de mortandade geral e anónima, provocada pela Guerra, que se coloca a Rilke a problemática da morte, tão vincadamente presente em Os Sonetos de Orfeu. A morte, essa figura injusta do Destino de todos os nascentes que, dolorosamente, nos rouba os entes mais queridos.
Talvez seja mesmo este o sentido último que possamos extrair deste evento devastador e irremediavelmente presente em todas as vidas, sem excepção. Saber-se alguma coisa da própria Morte, «esse cozinheiro azulado / numa chávena sem pires / (...) essa comida cheia de obstáculos / (...) esse duro presente, / como uma dentadura postiça” :
Talvez esta aterradora experiência se desenrole perante observadores desprevenidos, se é que nos é possível imaginar a existência de olhos imperturbáveis, de olhos que apreendem e contemplam, tal como o geólogo, a rocha apenas na sua extrema dureza e apurem um outro grau ainda superior de dureza da vida, para além da morte, assim desenhada em tão grande efervescência.
Esta preocupação, esta reflexão constante sobre da morte, vai-se aprofundando, cada vez mais, no sensível espírito de Rilke para quem o sofrimento é, em si mesmo, uma forma de redenção, até se constituir como o ponto nevrálgico da sua concepção de mundo, personificada na figura de Orfeu.
Orfeu. Sempre Orfeu, o semi-deus cujo canto o torna eternamente vivo para além do seu perecimento nas mãos das furiosas Ménades que, só em aparência, conseguiram calar o som encantatório da lira que lhe fora doada por Apolo, perpetuada pela canto misterioso do rouxinol.
Aqui toma forma e expressão plena a ideia da implantação da morte na vida. A aceitação da vida e da morte mostram ser uma só coisa. A Morte é apenas «o lado da vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos».
Rilke mostra-nos, a cada momento, esta imperiosa necessidade de interiorização da morte, assim como da interiorização de Deus: a morte, que expulsámos de nós, e tornámos uma coisa absolutamente exterior, como se fosse algo que não nos dissesse directamente respeito, que não fizesse parte do curso natural da nossa própria vida. Tornámo-la cada vez mais afastada de nós. Espia-nos algures no vazio para, de repente, sem aviso nem chamamento atempado, quiçá, por uma escolha malévola, assalta-nos imprevistamente.
Assim aconteceu com Eurídice, a esposa amada por Orfeu, que, subitamente, na noite do dia do seu casamento, foi mordida por uma cobra venenosa. Impiedosamente, chamou-a para reino dos mortos, conduziu-a ao Hades, condenou-a a permanecer aí, nesse local medonho, sem o seu amado, para todo o sempre, apenas em virtude de um olhar que não resistiu e se inclinou para o lado proibido: «Ela porém ia pela mão do Deus, / travado o passo das faixas de morta, / incerta, suave e sem impaciência. / Seguia ela em si como de esperanças / e sem pensar no homem que ia à frente / nem no caminho que subi à vida. / Estava em si. E o seu ter-morrido / enchia-a toda como uma prenhez. / Tal qual um fruto de doçura e treva, / estava cheia da sua grande morte, / que era tão nova que nada entendia» .
A morte, jamais visionada pelos homens como o mais fiel adversário da vida, emerge como um “adversário invisível no ar”, qual «taça perigosa da nossa felicidade, da qual a cada momento podemos ser entornados». É-nos, afinal, tão mais próxima do que qualquer outra coisa que nos rodeia quotidianamente. Mas, mesmo assim, não podemos apurar sequer a distância entre ela e o nosso “íntimo centro vital”.
Eurídice é exactamente o arquétipo perfeito dessa presença constante da morte na vida, da inseparabilidade radical destes opostos que, a limite, se completam no ser e no estar quotidiano do homem.
Á medida que as mortes individuais, aquelas que mais directamente são sentidas pelo poeta, se vão sobrepondo à dolorosa enormidade das mortes anónimas da massa incógnita de seres humanos reduzidos à mais vã poeira de si, vai-se definindo, com clareza, no seu iluminado espírito, uma nova missão: «Se, no meio da turvação e desconcerto geral do humano, vejo ainda perante mim uma tarefa, pura e independente, é unicamente esta: reforçar a intimidade com a Morte partindo das mais fundas alegrias e magnificências da Vida: tornar a Morte, que nunca foi uma estranha, de novo mais reconhecível e perceptível como confidente discreta de tudo o que é vivo» .
Tudo se elabora e se consolida, no inconstante espírito de Rilke, de um modo verdadeiramente vivo. Tal como Orfeu, sente a estrita necessidade do imbricamento dos “dois reinos”, cada vez mais inseparáveis no existir humano, mas, cada vez mais, também, determinados por uma aparente apatia, melancolia e secura do coração. É “um estado de congelação interior” que torna esse músculo vital quase inacessível, agravado pela mais íntima necessidade de recolhimento e isolamento, dilaceradora do coração que sente.
Emerge o desassossego do mundo exterior, a insegurança de um espaço chamejante no qual já não se pode mais colocar um objecto, uma palavra, sem que, de imediato, despoletem sombras inquietas. A única saída possível é o recolhimento, entendido como o meio de alcançar um lugar mais recôndito, onde ainda se possa encontrar alguma estabilidade.
O Mundo já não é mais o lugar onde seja permitida uma plena auto-realização. O Mundo tornou-se adverso, aureolado por uma esfera de inacessibilidade perante a qual só há um caminho possível: a solidão, o recolhimento interior, o isolamento, o fechamento de si.
É o que resta ao poeta modernista que, como ninguém, sentiu e vivenciou o estado de errância do humano, impotente perante a inquietude de um Mundo que nada perdoa, mas que exige e violenta mesmo o coração sem mácula, o coração que encontra na Natureza a única e grande companheira de todas as horas de enfado ou de tédio, de alegria ou de expressividade dos que amam profundamente as entranhas da Vida, de que da Morte nunca se separa.
As expressões de desânimo e, por vezes, mesmo de desespero e de revolta, tão características dos autores modernistas, repetem-se e acumulam-se na sensível alma do poeta, depositária dos segredos da Terra, onde, desolado, consegue encontrar alguma harmonia e tranquilidade: «Eu fui pré-mundo. / Foi a Terra que me confiou o segredo, como ela faz com o germe, / para o conservar intacto. Oh as noitinhas íntimas! ambas nós chovíamos / tranquilas e aprilinias, a Terra e eu, sobre o nosso seio. / Homem! ai, quem pode provar-te a harmonia fecunda / que nós sentíamos. O silêncio do Universo nunca te será / anunciado, nem como ele se fecha em volta de alguma coisa que cresce» .
É a subversão e o enterramento do individual, a obliteração das medidas e, sobretudo, do coração individual que já não é mais medida da Terra e do Céu, mas diariamente assaltado por “sucessos e empreitadas”, que chocam o Poeta.
Não lhe pode escapar o lado sórdido da catástrofe. Não são raras as invectivas a que assistimos contra a campanha de mentiras que assomam, a cada passo, neste mundo sem freio previsível.
O mais terrível é a pobreza interior e a indizível miséria da própria vida. Já não há meios adequados que a permitam descrever. As palavras tornam-se insuficientes face à grande lamentação, ao desespero do luto: «tudo o que agora houvesse ainda para dizer, teríamos de parti-lo cá dentro com um pedaço do coração –, fica para além do exagero, para além do máximo jamais possível em palavras, e o desmedido da lamentação que de nós quer irromper pressupõe em nós, para ficar ainda dentro da medida, um ânimo infinitamente ampliado que por sua vez não se poderia desenvolver em época tão confusa e enredada» .
As palavras já não são capazes de dizer as coisas. O mundo tornou-se monstruosamente indizível. A alma do Poeta é assombrada pelo desalento, pela revolta, pela destrutividade brutal da Guerra que, tal como a cobra que mordeu o pé da formosa Eurídice – na noite em que iria desfrutar, pelo amor, dos prazeres intermináveis da tão esperada união conjugal – conduz cada ser humano à indignidade da sua própria existência, pela absurdidade em que a envolve, extravasadora dos próprios domínios naturais da Vida.
Face a um Mundo assim configurado, e apesar do seu constante grito de alerta, o Poeta sente-se impotente. Para além do recolhimento, resta-lhe o silêncio, essa outra forma de dizer o indizível. Mas não se cansa de perguntar.
Tal como Orfeu, não desiste de transcender o mundo dos vivos para o mundo dos mortos e, pelo seu terno canto, recuperar uma vida dolorosamente perdida: «Não há então ninguém capaz de impedir e de ter isto? Porque é que não há um par, três, cinco, dez, que se juntem e gritem nas praças: Basta! e se deixem fuzilar e tenham dado pelo menos a vida por gritar: basta!, enquanto os outros lá fora morrem ainda só para que este horror continue, e continue, e se não veja o fim à destruição. Porque é que...» Sim: Porquê? Pobre Poeta?»
Rilke, que traz a multidão dentro de si, impotente, desolado, recolhe-se novamente ao silêncio. Embora parta sempre das suas mais íntimas e mais centrais convicções, reconhece-se absolutamente incapaz de comunicar. Os seus impulsos mais fortes estão encerrados na sua mais tensa produção, esquivando-se a toda a censura do mundo.
“Cidadão da Europa intelectual”, como lhe chamou Paul Valéry, é uma da figuras mais puras e mais estremes da cultura europeia que, não obstante as vilanias do seu tempo, não deixa de transportar, através de céus e terras, os grandes e suculentos entusiasmos duma humanidade comum.
Guarda sempre em si uma palavra de esperança, conduzido pela ideia que move a obrigação da humanidade para um futuro comum, que culminará na união de milhões de homens em todas as terras e em todos os lugares.
Nesse instante supremo será possível falar, de novo. Quebrar o silêncio e, então, cada palavra, seja ela de amor ou de arte, encontrará um novo eco, um som inteiramente renovado, uma nova acústica, uma nova musicalidade e, até mesmo, uma atmosfera mais aberta e um espaço mais amplo que, trará ao poeta, o renovado e firme desejo de continuar a viver, em prol desta mesma esperança. Aliás, «sem ela, tudo (...) ficaria pesado sobre nós como uma montanha» .
O deus da lira, senhor do canto e da poesia, participa desta experiência preenchedora que é ouvir, escutar, e des-vela o “ante-cantar” como uno. Só o silêncio dos mortos pode ser seu par, porque a humanidade, afastada do circuito órfico, não tem o entendimento da circularidade, não canta mais o canto da Terra, sempre redondo.
Assim persegue Orfeu, ou se preferirmos, Rilke, em busca de uma espécie de “sossego musical” que faz voltar a si a Terra antiga, ainda em estado de silêncio: os ruídos “dispersos acalmam-se, ao abandonar o dia / e, em uníssono, recolhem à voz das águas”.
Orfeu e Rilke são, a um tempo, a “orelha da Terra” e a “Boca da fonte” que fala do “uno puro” e inesgotável. Da Terra sem ruídos, apenas estasiada perante a lira erguida que o louvor entoa. Da lira, que até os mortos faz erguer, sempre que tocada por esse mensageiro dos vivos, que transpõe o limiar dos mortos e que da morte faz vida.
A música e a morte são, em de Rilke, um dueto verdadeiramente inseparável. A música assalta o poeta com uma fúria rítmica, portadora de uma censura erguida contra o coração que, por vezes, não sente tal vaga e quase sempre se contenta com vibrações menores. Não tem mais “fôlego para arrancar / tempestades de som” a “trombeta do anjo” pela qual se “inicia o juízo final” .
A Música é esse “hálito das estátuas” ou, quiçá, o “silêncio das pinturas”, “a língua onde as línguas acabam”. É o “tempo posto aprumo sobre o sentido dos corações transitórios”. É a transmutação dos sentimentos em paisagem audível, a eterna peregrina onde repousa o espaço dos corações de nós liberto. Também é o que nos transcende. Também é o mais íntimo de nós, quando esse íntimo nos envolve “como o mais exercitado dos longes”, como o outro lado do ar puro que a todo o momento nos refresca a alma e nos leva o espírito para as alturas, onde repousam os Anjos e os Deuses, de um modo absolutamente puro, gigantesco, mas já não habitável .
Aliás, nós, os humanos, não somos senão apenas boca. “Somos voz só da boca” que, de repente, solta um grito quando a música já não é mais música e se transforma num ruído insuportável, afastando-nos da musicalidade original e do harmonioso canto da pura lira do “deus cantor”.
Assim se torna inaudível aquela música que deixara estupefactos, outrora, aqueles ainda capazes da escuta primogénita; que tornava suas almas infinitamente abertas aos apelos do silêncio, mostrante da escuta autêntica e da fala primeira: «Se tudo ao menos uma vez se calasse. / Se o casual e o acidental / emudecesse, e o riso vizinho: / se o ruído, que os meus sentidos fazem, / me não estorvasse tanto na vigília –» .
Seguindo de perto a natureza tão peculiar de Orfeu, Rilke constata a existência de duas realidades sem conciliação possível: a Natureza e a Humanidade. Não experienciam exactamente a mesma unidade: Não seguem os seus caminhos monozigoticamente. São campos que se dão, amiúde, na sua mais drástica oposição e paradoxalidade.
O ser humano sofre ao afastar-se da dádiva da Natureza, fonte e reserva de todas as forças que, no entanto, vai esgotando, impiedosamente, pois já não tem mais consciência dos limites da sua dominação absurdamente incontrolada e incontrolável.
Na escala ontológica de gradação de todos os entes, bitolada pelo grau de proximidade de cada um para com a Natureza, o homem, que pouco tem guardado da sua humanidade, é inferior ao animal e à planta. Distanciou-se da sua vida total, tornando-se um ser de pobreza, tal como já havia sido enunciado por Sófocles, no segundo coro de Antígona, incomparável obra de arte trágica que, como nenhuma outra, dá conta das violentas barbaridades do humano perante a Natureza, indefesa, apenas desejante de preservar o seu equilíbrio e a sua estabilidade, em toda a sua dignidade e autenticidade.
As palavras de Sófocles são, neste ponto, perfeitamente ilustrativas da posição rilkeana. O tragediógrafo grego, ainda imbuído pela áurea significante do pensar originário, apercebe-se de que, o nosso vandalismo ecológico, não é senão mais do que uma consequência inevitável de uma inquietante estranheza inicial que, bem como o poder que ela engendra, precede o homem.
É sobre esta vida que roda sobre si mesma, mas que não habita mais dentro do seu próprio círculo, que o ser humano atira os seus laços e as suas redes, quais instrumentos destruidores da ordem natural da própria Natureza. A toda a ordem tenta impor os seus jogos, por vezes, irremediavelmente esmagadores.
Devemos examinar, sempre na ausência da nossa miopia, o sentido que deve ser conferido à brilhante conquista feita pelo homem do Mar, da Terra e das espécies animais. A travessia dos mares, a abertura da Terra, com a ajuda dos arados, põe em obra o movimento de violência que é central ao homem, o qual, continuamente errando, desenraíza, forma e disforma os limites da vida orgânica.
O grande grito de alerta, surgido no já referido coro de Antígona, encontramo-lo, vivamente resplandecente, na figura do homem imperialisticamente dominador de Os Sonetos a Orfeu, o mais inquietante e prodigioso entre todas as criaturas: «Homem dominador, desde que encarniçado / andas na caça, mas sei-te, mais que rede e armadilha», cujo «matar é uma forma do nosso luto errante» .
É um ente extra-ordinário, enorme, que «co’o sopro invernoso do Noto, / passando entre as vagas / fundas como abismos, / o cinzento mar ultrapassou. E a terra / imortal, dos deuses a mais sublime, / trabalha-a sem fim, / volvendo o arado, ano após ano, / com a raça dos cavalos laborando. / E das aves as tribos descuidadas, / a raça da feras, / em côncavas redes / a fauna marinha, apanha-as e prende-as / o engenho do homem. / Dos animais do monte, que no mato / habitam, com arte se apodera; / domina o cavalo / de longas crinas, o jugo lhe põe, / vence o touro indomável das alturas. / A fala e o alado pensamento / as normas que regulam as cidades / sozinho aprendeu; / da geada do céu, da chuva inclemente / e sem refúgio, os dardos evita, / de tudo capaz. / Ao Hades somente / fugir não implora. / De doenças invencíveis os meios / de escapar já com outros meditou. / Da sua arte o engenho subtil / p’ra além do que se espera, ora o leva / ao bem, ora ao mal; / se da terra preza as leis e dos deuses / na justiça faz fé, grande é a cidade; / mas logo a perde / quem por audácia incorre no erro. / Longe do meu lar / o que assim for! (...)»
Este é o modo próprio de ser dos humanos e da sua vida de habitantes na Terra. E Rilke, que frequentou intimamente os pintores de Worpswede, sente-se participante das mesmas intenções desses artistas que captam, tal como Sófocles, em tempo de infortúnio, a essencialidade dessa habitação humana na Terra, que também é pro-dução, poihsiz, no sentido da jusiz grega que, em si mesma, dá o ser da habitação, como o cultivar e o edificar, e não mais como o destruir, o manipular ou o aniquilar.
Cultivar é vigiar o crescimento dos vivos. O Habitar indica-nos o cuidado da morada dos mortais na Terra. Um cuidado que não é senão o modo do seu sustento, do qual a Terra é fonte originária.
Worpswede é, para Rilke, o reduto onde a paisagem é admirada e respeitada em todo o seu esplendor. Pintores vieram de longe para viver nesse pedaço Natureza, para a admirar e sentir a sua força criadora. Partilhando de uma mesma emoção de vida. Pretendem que as suas obras revelem a adesão íntima ao estado de ser próprio da Natureza virgem, imaculada.
A Einfühlung, com as manifestações da Natureza, resulta de uma relação privilegiada: estes pintores instalam-se na Natureza para interpretar os seus sinais e os seus sons, para compreender, intimamente, a sua mensagem e não para a desventrar.
Rilke refere particularmente o espírito de finura de Bökclin em captar a pulsação da Natureza e de todos os seres que, real ou alegoricamente, a preenchem. Quando na auréola de um bosque, Bökclin pinta um licorne selvagem, parece incarnar nele todo o mistério da floresta. E se o pintor faz poucos retratos é porque existem poucas pessoas que revelem, no olhar, o carácter da relação que os artistas têm com a Natureza. Por isso é que para Rilke, Bökclin, é um dos pintores que mais intensamente percebeu que a fronteira que separa a Humanidade e a Natureza é perfeitamente intransponível.
Os pintores de Worpswede, tal como o poeta, perseguem a essência da Natureza. Mas ela sempre lhes escapa. A Natureza gosta de se esconder. Tem as suas próprias leis internas, por vezes, inacessíveis à mais perspicaz forma em que a inteligência humana se apresenta, como bem observaram os pensadores renascentistas.
A Natureza é indizível e até mesmo inexprimível, como o enigmático sorriso da Mona Lisa. Esse sorriso de Anjo, pintado por Leonardo de Vinci, esse tipo ideal de retrato renascentista. Um ente perfeito e misterioso, sempre a olhar para nós. Encerra diversos valores simbólicos. Insinua, a cada instante. Surge uma interrogação intelectual que, ao parecer desvendar-se, quando se desvenda, se transfigura. Com a transfiguração vem a certeza de que o sentido que parecia próximo está, outra vez, escondido, longe.
Rilke reconhece que a Natureza tem segredos insondáveis para os humanos. É mais misteriosa do que os mortos. A sua origem é mais enigmática do que a Morte e a Vida. E, contudo, os humanos frequentam a Natureza como se fossem donos dela. Com prepotência, servem-se dela e dos seus magníficos dons, explorando os seus recursos até ao esgotamento.
Estranhos da Natureza, habituaram-se a contactar com ela superficialmente. São apenas as crianças que a reconhecem como reduto matricial, integrando-se nela, com a mesma facilidade com que fogem dos adultos e dos seus hábitos.
O conforto da infância com a Natureza permanece nos adultos, exclusivamente, como memória de experiências, outrora felizes. Quando procuram as raízes da infância, a Natureza aparece como imagem desse tempo plenamente redondo, primordial e infinitamente originário.
Rilke manifesta, obsessivamente, uma ânsia de voltar à infância, de marcar um encontro com as origens, de ser novamente criança. De ser como as crianças que brincam, lá fora, passando ao lado do grito verdadeiro: “Oh fosse eu, / um menino e pudesse voltar a sê-lo ainda”, exclama Rilke, nostalgicamente, na Sexta Elegia.
É precisamente como adulto que o ser humano não vive o sentimento do todo da Natureza, não ouve o canto da Terra. Mas, «a música, sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina» .
O canto da Terra não deixa de manifestar-se ritmicamente. Na Primavera, a Terra está particularmente esfuziante, depois da invernosa reserva entorpecida em que interrompe a doação. «A primavera regressou. Em tudo / a terra é uma criança e aprendeu inteiras / tantas, tantas poesias... E, pelas canseiras, / recebe o prémio do seu longo estudo. (...) Terra que estás livre, dá-te a jogos felizes / agora co as crianças. Quem te apanha, / alegre terra. A mais alegre ganha.»
Rilke exprime com as imagens da fonte, dos frutos, das flores, das árvores, das seivas, dos sucos, dos rumores e dos perfumes, a vitalidade real em que se move a Natureza, re-completando ininterruptamente o magnífico círculo do regresso e da despedida.
A fonte, uma boca prenhe de dádivas, fala-nos do uno puro e inesgotável. Dela brota a água sempre corrente que nos chega por uma “máscara de mármore”, a «água desbordada / pra outra água à espera lá no fundo, / silenciosa aguardando a que vem murmurando / em segredo, a mostrar-lhe na cova da mão / o céu, por trás de verde e escuridão, / como coisa escondida e cobiçada (...) / pela borda musgosa a cair mansa / pra o espelho do fim que lá de baixo, baixo, / faz a concha sorrir em trémula mudança” .
Embora fale aos vivos, somente ao morto é dado beber dessa água, “aqui por nós ouvida, / quando o deus lhe acena em silêncio, a chamá-lo».
A fonte é origem. É abertura de onde irrompe a água mais pura e cristalina. É, o receptáculo de retorno. Dela se soltam falas, de uma inesgotabilidade divina. A água corrente é sonora e primordial, como o fogo, o ar e a terra. Vem de longe, transportando as falas. Porém, “para si somente / ela fala”. Sem interlocutores, a Natureza, numa tranquilidade insuspeitada, comunica o fio de harmonia captável pelos sons mais subtis: “Maçã cheia, pêra e banana, a dita / uva-espim... Tudo isto fala”. A chama, ao variar a sua forma com toda a fantasia, é um elemento de transubstanciação, e fala, também.
Entre as flores que são sempre fiéis à Terra e, por isso, murcham sempre arrependidas, a rosa, é a eleita. A rosa é a flor de Rilke. Cultivou rosas no jardim de Muzot. Dedicou-lhe um ciclo de poemas franceses – Les Roses – e escreveu para o seu epitáfio: «Rose oh Reiner Widerspruch. Lust niemands Schlaf zu sein unter so viel Lidern», quer dizer, «Rosa, ó Contradição Pura, Volúpia / De Ser O Sono De Ninguém Sob Tantas / Pálpebras» .
Em «Os Sonetos a Orfeu», a rosa é uma flor dotada de ser. Está dentro do circuito órfico. Bem perto de Orfeu. É, amiúde, conotada com algo de fundamental, ainda que não seja dito exactamente o quê.
A rosa é em si um perfume que percorre os séculos. No entanto, é vão procurar encerrá-la num nome, numa designação. Ela escapa-nos sempre. Rilke respira a rosa, ao mesmo tempo que expressa o desejo de que se dê um nome a uma variedade de rosas.
Tudo é metamorfose, fim e recomeço: «Rosa, ó rainha, outrora é de supor / fosses cálice de bordo limitado. / Mas pra nós és a plena, inumerável flor, / o objecto inesgotado. / Nessa riqueza, pões roupas e mais roupas / num corpo que é de nada senão luz; / mas cada pétala mostra como poupas / todos os atavios e como os / negas. Há séculos nos chama teu perfume / com seus mais doces nomes; de repente / como a glória paira nos ares, balança. / Ninguém sabe nomeá-lo, apenas se presume... / E uma recordação tem-no presente: / nós pedimo-la às horas da lembrança.”
A Rosa é a essência de toda a plenitude de ser. Tem um encanto natural que instaura contradição. É portadora de uma beleza peculiar que, com os espinhos, se mantém eternamente unida.
É a flor dos contrastes: da suavidade delicada da sua beleza ingénua, dada pela cor e pelo aveludado das suas pétalas, brota, ao mesmo tempo, a agressividade, a violência dos agudos espinhos, que fazem sangrar a mais dura pele.
É elevada a um nível incomparável, ao representar a transitoriedade da vida, tão cara ao Poeta. De uma forma mais delicada, ao representar o conhecimento da beleza na efemeridade, ao figurar a morte que anuncia o fim do ciclo da vida, pelo espinho que pica, e intensamente faz doer.
No entanto, o seu ser é inesgotável, na sua temporalidade e, enquanto tal, coloca-nos esse premente problema da aceitação da transitoriedade permanecente no homem e nas coisas, quando as pétalas murcham e os picos ainda permanecem. As pétalas são invólucros de um corpo que já não é nada, cuja perenidade se revela através de perpetuações eternamente perpétuas.
A Natureza, na sua ordem, manifesta uma intencionalidade que se anuncia por Leitmotive. Seria apenas preciso sentir-se parte da mesma textura para os perceber: «Escuta, ouves já os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera».
Os humanos já não têm mais a morosidade necessária para captar a atmosfera musical que se solta nos retornados círculos da Natureza. Os sons emergem da sombra e voltam à sombra, num movimento intemporal, sem que eles os sintam: «perto das sepulturas, / trazem-te os teus dizeres, os que então jorrem, / passem teu queixo de velhas cãs escuras, / pra caírem depois na concha à tua frente. / (...) Uma orelha da terra».
Os humanos têm pressa. São ambiciosos. Estranhos e distantes entre si. O ruído da vida quotidiana diminui-lhes a subtileza da audição. Já não são capazes de escutar os sons da Terra: à “orelha da terra” não respondem mais.
Os Leitmotive, expressões da vitalidade da Natureza, só os atraem para cumprirem o prazer do efémero. Os frutos inchados de maturidade são, por si, uma atracção irresistível, mas sem consequências representativas, para os humanos, no seio do ventre da circularidade da Natureza: «Onde havia palavra, há descobertas / na surpresa da polpa que se toca». «Esperai..., a que sabe... Mas foge logo após».
Tudo é breve e passageiro. Se Rilke insiste na presença do efémero é, para tornar mais claro, que a origem completa o seu arco com a morte: «Tudo isto fala / morte e vida na boca». Engana-se quem, no reino dos vivos, acredita na eternidade da Terra. O canto órfico é o alento que comove e que sobrevive quando a Natureza se desfolha.
O poeta, que sobrevive à estação da morte, está sempre preparado para acolher o futuro. A época do ano mais expoente é aquela em que, sendo já Inverno e ainda não sendo Primavera, se anuncia a renovação.
Rilke é, definitivamente, o poeta da Vorfrühling. A pré-Primavera anuncia as celebrações da festa órfica. A árvore, a água, resistiram ao tempo e à morte. Exprimem a força renovadora da criação. Brevemente chegarão as folhas. Depois, os frutos e, com eles, os perfumes.
A marcha do ser sobrepõe-se ao não-ser. A força da criação é incontrolável. Mas a alegria e a beleza não são uma conquista para a humanidade. Tudo o que vem do ser, a ele volta. A Natureza expõe-se nos seus sinais, recuperando-os no movimento de regresso a si.
O domínio dos mortos é tão presente como o domínio dos vivos. Mas só quem partilha das refeições dos mortos, pode compreender a sociedade dos vivos. Quem desce ao reino das trevas, como Orfeu, pode celebrar os mistérios da Terra. «A vós, em meu sentir presença permanente, / sarcófagos antigos, aqui venho saudar-vos» .
Os mortos são uma “presença” diversa da dos vivos. Permanecem na unidade do ser, regressados à essência da sua textura. A morte não faz parte de um estado misterioso, antes acompanha a vida como uma metade. «Como Orfeu, toco / a morte nas cordas da vida / e à beleza do mundo / e dos teus olhos que regem o céu / só sei dizer trevas (...) Mas, como Orfeu, sei / a vida ao lado da morte, / e revejo-me no azul / dos teus olhos fechados para sempre» . Orfeu frequenta a vida e a morte, sem deixar de ser presente. O seu canto é de eterna ressonância.
O reino dos mortos é sempre presente e, na sua unidade, mantém todo o passado e promete todo o futuro. Na metamorfose do visível em invisível, as metades reúnem-se. «Nós, raça de milénios: nós, mães e pais, / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais. / Sem fim aventurados, o tempo que nos resta! / Só a morte em silêncio conhece o que nós somos / e o que é que ela ganha, quando a nós empresta.»
Uma das ideias fundamentais da atmosfera rilkeana é a da morte metamorfose. O movimento de passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser é constante. Não há um princípio nem um fim, mas um encadeamento de passagens de figuras.
Contudo, no primeiro soneto, dedicado a Wera Ouckama Knoop – o nº 25 da primeira parte – Rilke não esconde a desolação e a dor perante a morte prematura com que «transpôs a porta aberta e sem consolo». É interessante constatar que este soneto que, não rodeia o espanto perante o não significado da vida, precede imediatamente o soneto em que Rilke fala da morte cruel de Orfeu pelo “enxame das Ménades”.
Há uma afinidade traduzida pelo efeito do canto de Orfeu na bailarina. Só escutando a lira, moveu o seu efémero corpo, mostrando que a dança é, também, um lugar do regresso do ser. «Sabias ainda o lugar da lira erguida, esse / onde ela ressoa –; o inaudito centro. / E por ela ensaiaste passos da tua arte / na esperança de que um dia, à festa plena, dentro, / a face e o andar do amigo se volvesse».
Antes deste segundo jogo, o da bailarina com o poeta, Rilke atribui a Wera o soneto 18, da segunda parte, fazendo participar a dança e a bailarina da superação do tempo e da exaltação do círculo órfico. “Ela dormia o mundo “. É a afirmação da harmonia silenciosa do universo”.

Isabel Rosete
Março, 2008

SIMBOLISMOS: RILKE E ORFEU
Por: Isabel Rosete


«Com o meu cantar
Seduzirei a filha de Deméter,
Encantarei o Senhor dos Mortos;
Comoverei os seus corações com estas melodias.
Hei-de conseguir trazê-la do Hades!
(...)
Ó Deus que dominas o silencioso mundo das trevas!
Para junto de ti todos os filhos das mulheres vêm sem
[excepção;
Todas as coisas belas acabam por descer ao teu reino.
És o credor a quem nunca se fica a dever.
Um momento breve permanecemos na Terra,
Depois, pertencemos-te para sempre, para todo o sempre.
Eu busco alguém que precocemente veio ter contigo.
O botão foi colhido antes de a flor ter desabrochado.
Tentei, em vão, suportar essa perda. Não consegui!
O Amor é um deus de poder infinito. Ó Rei! tu sabes,
Que é verdadeira aquela velha história que os homens
Contam.
Sobre as flores que presenciaram o rapto de Prosérpina.
Permite, então, que se urda de novo para a doce Eurídice
O fio da vida, que foi tirado do tear
Cedo de mais. Vê! peço-te pouco,
Apenas que ma emprestes, não que ma dês...
Será, de novo tua, quando tiver vivido a vida até ao fim.»


Orfeu, reconhecido como filho de Eagro (ou segundo outra versão do deus Apolo), príncipe trácio, e de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajes dos trácios. É o rei desta região. Orfeu, o cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e «cítara» como ninguém. É o único de entre os mortais, cuja arte musical é igualada à dos interpretes divinos, os primeiros grandes músicos, como Apolo, Pã ou as Musas, que não têm nenhum instrumento seu, a não ser a sua própria voz, tão extraordinariamente bela, que nada há que lhe possa ser igualado.
Da sua mãe recebera o dom da música e do canto; da Trácia, por intermédio de seu pai, o impulso de desabrochar e o desejo de expansão. Cantava melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se aclamavam. Durante a expedição dos Argonautas, no seio de uma violenta tempestade, diluiu o pânico, acalmou os tripulantes e amainou as ondas com o seu canto.
Orfeu, o sacerdote dos Argonautas, reteve a sedução das Sereias, com a sua música, que ultrapassava a doçura destas feiticeiras habituadas a desviarem o curso dos humanos em virtude dos seus dons encantatórios. A sua música é a linguagem perfeita do coração, do amor, da sensibilidade, do afecto. Em tudo penetra. É divina, demoníaca; pura embriaguez dionisíaca. Fiel companheira de todas as horas; eternamente presente em todos os actos, de vida ou de morte, de prazer ou de desolação.
Símbolo da música, da poesia e do amor, da audição intacta dos mais puros sons da Terra, Orfeu foi apenas traído pela visão. A perdição pela visão ex-tática do amor constitui o último reduto da sua própria existência. Sendo dos “dois reinos”, culmina como a sua Dríade, Eurídice, no reino dos mortos, não obstante a eternidade do seu cantar, pelas mãos das furiosas e enlouquecidas sacerdotisas de Baco, multidão selvagem, possessa com a ira da embriaguez excitada pela vista do sangue.
A música de Orfeu é isso mesmo: a linguagem universalmente eterna de todas as coisas. Mais do que as palavras despoleta o sentir e o ser de cada ente; o seu poder infinitamente penetrante comove o mais insensível; acorda o adormecido; ressuscita os amortalhados; torna visível o invisível; faz escutar o silêncio; torna animado o inanimado; move o imóvel; torna o selvagem dócil. É encanto, magia, hipnose e catarse: no seio das mais profundas tristezas faz brotar a alegria; dá força ao mais frágil dos vermes; faz repousar, torna calmos, os espíritos mais agressivos; acalma as iras e as tempestades.
É este poder encantatório da música que Rilke transporta para os seus Sonetos, ele que também é Orfeu, tal como todo o poeta. Porque afinal a missão fundante do poeta é mesmo celebrar: celebrar a palavra divina, celebrar o ser e todos os entes. O poeta está embrenhado numa ontologia fundamental. A missão de Orfeu é salvífica, tal como a de Rilke que, sob o lema de Hölderlin, está plenamente consciente de que «(...) onde há perigo, cresce / Também o que salva» . Nada é irremediável, nem mesmo a morte ...
Referindo-se ao mito de Orfeu, os gregos destacam-no, entre a mitologia helénica, por ser dos mais obscuros e carregados de simbolismo; por se ter tornado uma verdadeira teologia, que não deixou de exercer influência determinante na formação do cristianismo primitivo, estando atestado na iconografia cristã. Para os romanos, por seu turno, e, particularmente segundo Ovídeo, Orfeu assume o mesmo simbolismo: subjuga, com o seu melodioso canto e com o som mágico da sua lira, os animais e as árvores, procura Eurídice nos infernos e, igualmente, é morto pelas Ménades.
Rilke parecendo manter a tríade qualificativa de Orfeu, recontextualiza-a ao encará-la como fenómeno interpretativo do pulsar original do mundo. Os Sonetos abrem com os efeitos encantatórios do canto de Orfeu sobre a Natureza:

«E uma árvore irrompeu. Ó ascese pura!
Ó árvore no ouvido! Orfeu numa canção!
E tudo emudeceu. E o silêncio inaugura
novo começo, sinal, transformação.
Animais de silêncio saíam do arvoredo
aberto e claro, dos ninhos de descanso;
e então aconteceu que não era por medo
nem por astúcia que vinham tão de manso,
mas sim porque escutavam.»

O poder dos sons da lira do poeta não é um facto insólito. Antes se manifesta, com mais ou menos audibilidade, em todos os sonetos. Quem é Orfeu, não sendo daqui, mas se «dos dois reinos fronteiros / a sua vasta natureza cresce»? Quem é Orfeu se «sobre ir e mudar / vasto e livre dura / teu ante-cantar, / deus da lira pura»? Quem é Orfeu? O «calmo amigo de tantos longes vários, / sente que a respirares o espaço aumentas. / Entre as vigas de escuros campanários / deixa-te ressoar». Orfeu é o “deus cantor”. Eis é a evocação de uma qualidade que lhe é única. O canto prodigioso do poeta participa do canto da Terra e a forma profunda da sua existência é o seu inigualável cantar. A Terra expira o canto de Orfeu. A lira de Orfeu inspira o canto da Terra.
A Terra repousa em si. Irrompe e repousa em si, numa imensa plenitude. Orfeu escuta-a e celebra-a. “Celebrar” é o termo que serve a Orfeu: a sua missão é celebrar as coisas da Terra. O seu canto exprime o dionisismo universal. «Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar, / (...) Nunca a voz lhe falhou no pó, se fosse / do exemplo divino possuído. / Tudo se torna vinha, ou cacho de uva doce, / em seu sul sensível amadurecido. / (...) Porque ele é um dos mensageiros vivos: / transpõe o limiar dos mortos e ergue as taças / com os seus frutos de esplendor votivos.»
Orfeu move-se livremente entre as árvores, entre as folhas e as flores e os animais com uma intimidade invejável. A sua fibra é tecida da fibra do mundo e o seu canto toma fôlego no respirar cósmico universal. Cantando, o poeta sorve o mundo e volta a deitá-lo fora num movimento ritmado e contínuo. Ao seu canto associam-se o vento, os ares, os céus sonoros, o voo... e o grito também.
Se Rilke mantém em Orfeu o poder da música e o poder da palavra sobre os seres e as forças do mundo, é porque Orfeu participa “na dupla paisagem” ao mesmo tempo que representa a ligação dos mortos e dos vivos, reinos sem fronteira definida. O primeiro contacto explícito do “deus cantor” com os mortos é quando aí procura Eurídice, conduzida a este mundo pela picada de uma serpente venenosa, quiçá a mesma que expulsou Adão e Eva do Paraíso, não mais recuperado pelos humanos. O episódio de amor de Orfeu e Eurídice, mais do que uma história sentimental simboliza a estranheza dos apelos da vida e da morte, quais pólos complementares, mesmo para quem tem poderes demiurgos.
Orfeu não se conforma com a irremediável perda de Eurídice. Lamenta-se doridamente sem cessar. Nem o seu magnífico canto que os outros alegra, lhe trás a satisfação, o ânimo, a coragem. Nada consegue reparar a perda de um ente tão querido. Ovídeo em As Metamorfoses descreve, como ninguém, essas súplicas comovedoras:

«Yo, pues, con humildad os ruego y pido,
por el silencio grande y los temores
de que está lleno el reino ennegrecido,
por esta confusión y sus terrores,
que me hayáis, sacros dioses, concedido
mi Eurídice llevar y mis amores,
tornándola la vida, de que el hado
con tan temprana muerte le ha privado».

Ovídeo relata-nos ainda como o som comovedor das suas palavras e dos seus acordes se estende às forças das trevas e como o senhor dos mortos lhe concede, excepcionalmente, um favor. Eurídice poderá voltar a ver a luz do mundo se Orfeu for animado apenas pela alegria de a reencontrar Eurídice. A proibição de olhar para trás não é só a crença na palavra de Hades, mas impõem a libertação de um comportamento que o fez perder Eurídice. É a possibilidade de Orfeu se purificar. Ressuscitá-la é ressuscitar-se ou ainda dar supremacia ao apolínio sobre o dionisíaco. Orfeu, deus omnisciente do círculo órfico, hesita entre o apelo dionisíaco dos desejos mais impulsivos do seu ser ardente e o equilíbrio da concentração apolínia.
Mas, o entusiasmo dionisíaco do envolvimento com a Natureza que tudo arrebata, bem como a escarlate apologia dos sons dos frutos maduros, do livre voo dos pássaros, da frescura da água corrente, quebra a ordem e harmonia próprias da atitude apolínia.
Eurídice simboliza, pois, o lado sublime e etéreo de Orfeu. A morte da figura deixa o poeta desorientado no meio dos sons estonteantes e enfraquece o seu poder criador. Quando procura Eurídice no reino das sombras, é esse lado de si mesmo que procura. Mas, porque não terá conseguido salvar Eurídice? Porque terá sido incapaz de salvar-se a si mesmo, de encontrar o balanço entre as suas contradições? Orfeu ao perdê-la pela segunda vez não disfarça o canto amargo do desespero. Talvez só um sentimento absoluto o inspirasse a não se voltar para trás ou talvez se tenha voltado, movido pela exaltação de ver Eurídice. A traição da visão. A perdição do olhar, como já referimos, impediram-no de promover a dupla salvação
Eros , uma das personificações que aparecem nas cosmogonias pré--filosóficas, é uma espécie de “primeiro motor” – assim reconhecido por Aristóteles – que explica o casamento e o nascimento de elementos mitológicos. É o princípio primeiro que tende para a plena conservação da vida, da existência de todas as coisas, garantindo a sua suprema vitalidade, a sua eterna perpetuação.
Eros como princípio de atracção na Natureza envolve a necessidade e o seu preenchimento. Por oposição, Thanatos é a força inversa que faz prosseguir a Natureza numa luta interminável até ao inorgânico. Eros e Thanatos é o par que determina a oscilação pendular do prazer e do desprazer, do sim e do não, do viver e do morrer. No estado amoroso a aspiração à morte aparece como solução única, sublime, final. A morte é o desejo da plenitude do não-ser, da união última e per-feita. É o que resta para além do canto que já não move nem comove.
Wagner, que consumou a ideia romântica de obra de arte total, na qual convergem todas as artes, conseguiu com o seu drama musical, Tristão e Isolda , entificar em sons, uma das relações de paixão e tragédia mais mistificadas na história da música. Os mistérios do amor e da morte são de uma obscuridade impiedosa. A revelação pelo amor da unidade na vida é breve, parecendo ser tomada como abuso a experiência dessa alegria.
«Tristão e Isolda», cantando o amor ideal, provam que esse amor não pode ser consumado em vida, como não o podem ser os amores mais belos. Ao amor demasiado só a morte pertence. Nesta obra intensamente poética, a música e o poema unem-se numa construção dramática em que se manifesta a finura criativa de Wagner.
Depois de fazer triunfar, num primeiro momento, o êxtase amoroso como conquista do absoluto, repõe a humildade humana: o absoluto não é, em si mesmo, a dimensão dos vivos. É num outro estado que se dá a unidade procurada na morte, onde se encontra a síntese do eterno e do passageiro. Só na morte descortinamos domínio inexorável do silêncio apaziguador. Nela e por ela as leis do mundo e da lógica são dissolvidas na vastidão do indizível. A morte cativa ao prometer o repouso no esquecimento eterno.
Brangäne dando o filtro do amor de Isolda, que tinha ordenado o filtro da morte porque é melhor morrer – de modo nenhum a salva. O amor, “esperança imunda” não resiste como promessa de libertação. Para o amor ser eterno, o tempo teria que ser superado. E o tempo é sempre separação. A viagem, referência de temporalidade, é impiedosa com os amantes. No navio em que Tristão escolta Isolda até ao palácio do rei Marke. Os amantes dão início à sua história de perdição, da “amor de perdição”.
Eurídice, também é depositária dessa experiência viandante. Na passagem para a clareira do mundo, perde definitivamente a possibilidade de regresso. Porém, recupera a sua unidade e ganha a eternidade. Para que “ilha dos mortos” serão atirados nas suas viagens? A de Arnold Böcklin parece pronta a recebê-los: uma rocha corcovada num mar negro e encrespada de ciprestes. Os buracos na rocha assemelham-se a catacumbas prováveis para as urnas que fazem a travessia num barco para a última viagem.
Max Reger – que seguindo o estilo perpetuado por Brahms, compôs música com uma harmonia cromática inigualável, como podemos vislumbrar nos seus quatro Poemas Sinfónicos segundo Arnold Böcklin – bem como Sergei Rachmaninov – que compôs em 1909, seguindo de perto o estilo de Cajkovskif, o poema sinfónico intitulado a Ilha da Morte – fazem a escolta dessas almas com uma sumptuosa angústia sonora. Rachmaninov, na introdução do poema, sugere o movimento surdo dos remos que se intensifica à medida que o barqueiro prossegue a viagem. É no episódio em que faz a evocação da vida passada, dos seus lamentos e dos seus júbilos, que o computador atinge um pathos orquestral pleno de visualidade.
A vida e a morte seduzem e perturbam como duas manifestações da mesma energia cósmica inicial. Rilke dá conta do esforço de ser de todas as coisas e Os Sonetos a Orfeu não deixam de manifestar a dificuldade em abranger a vida e a morte. Das Elegias diz Rilke que a «afirmação da vida e da morte constitui uma única e mesma coisa». Aliás, «reconhecer uma sem a outra – e é isso que aqui se experimenta e exalta – uma limitação que acabaria por excluir tudo o que é infinito. A morte é o lado da vida que está distante de nós que nós não iluminamos». Por isso, «é nosso dever tentar alcançar a maior consciência possível da nossa existência, à vontade em ambos os domínios e deles se alimenta inesgotavelmente... A verdadeira forma de vida cruza ambos os campos, o sangue da grande da grande circulação passa por ambos: não há nem um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade, na qual estão à vontade os “Anjos”, seres que nos superam.»
Com a superação do tempo, a afirmação reversível da vida e da morte teria mais evidência. Assim, é preciso fazer a travessia do tempo até atingir a libertação do mundo e ser conduzido a um outro ponto supremo, que seja, a um tempo, eterno e ilimitado. O não-ser é o verdadeiro lugar do regresso do ser a si. «Quem com mortos deve / papoilas comer /( nem o som mais leve /voltará a perder». (I-9)
Com a morte o ciclo completa-se: os mortos recolhem à fonte originária. Os sons da Terra são testemunhos desse estado fundador para quem estiver atento, porque «flores, parras e frutos por costume / não falam só a língua da estação» .
O passado e o futuro são categorias quase esquecidas. Estar aqui, no mundo, é fruir de um imenso agora, um eterno presente. Por isso, a morte é tanto uma ideia sempre próxima de Orfeu. Ele não é só um aqui, é um ser “dos dois reinos”. Orfeu não tem pátria, tal como Rilke, mas a Terra é o seu abrigo apropriado, o seu topoz, o seu lugar natural. Orfeu canta o eterno retorno da Terra, move-se na qualidade de participante do ser da Terra e da sua finalidade eternamente sem fim.


Isabel Rosete
Março, 2008
RAINER MARIA RILKE: «APAIXONADAMENTE»
Por: Isabel Rosete


«Amiga, acredita em mim, é a única coisa que quero. E com o mesmo sopro que peço a Deus que me deixe amar-te totalmente, peço-lhe, suplico-lhe que fortifique em mim a potência, a vontade, o desejo das mais guerreiras das solidões, porque não há em mim um só lugar que não lhe esteja consagrado»
I.

«Apaixonadamente» é o título atribuído por Rainer Maria Rilke a um conjunto de cartas dirigidas a Magda Von Hattingberg, a sua estimada “Benvenuta”. Assim a apelida. Assim celebra o especial carinho que nutre por tão nobre dama.
Amiga carinhosa, “querida criança”, Magda é a irmã perfeita e fiel, portadora de toda a felicidade passível de ser alcançada. Advogada do futuro do Poeta, a seus pés rendido. Também “Jubilosa”, “radiosa” e “transparente”. Um “belo coração”, sem dúvida. Uma alma prezada e irresistível, alvo perfeito do seu solitário e doloroso amor, da sua paixão e do seu desejo, à distância próxima do sentir.
Implora-lhe que o deixe amá-la, do fundo das raízes do seu coração. Todos os dias, todas as noites, todos os momentos «postos a salvo das suas próprias hesitações pela voz surda do trabalho» .
Deseja, tão-só, poder oscilar entre a obscuridade que as mãos da amada lhe trariam. Deliciar-se com o espaço de luz eterna que ela expira, pela música, que do seu peito brota por todos os poros e em todas as sonoridades possíveis.
No coração do Poeta não habita, porém, um amor inconsciente, arrebatador, sem limites, que possa rondar os domínios da embriaguez dionisíaca. Nem, jamais, um amor egoísta ou obsessivo, meramente carnal ou irrazoável.
Rilke esclarece a especificidade do seu amor por “Benvenuta” na sexta carta, datada de 8 de Fevereiro, de 1914: «agora peço-lhe que me deixe amara-te (…) para que este amor te faça bem, belo coração, alimente a tua alegria, se torne o jardim da maravilhosa estação com que tu me assaltas, alegria imortal, que seja um jardim – porque, vê tu, para um jardim florescer não é um labor, mas um prazer, na mais pequena flor ele encontra um profundo repouso; ó irmã, que terei eu feito para que o amor tivesse sido sempre um trabalho para mim, que eu nunca tenha tido em mim seus frutos solares» . Por isso, se encontra trancado, por detrás da porta, sem se mexer. Está ali, postado, sozinho, nos vales profundos do amor.
Sente «no seu rosto o que é ter de afrontar o mundo infinito e de compor numa superfície tão restrita, pela transfiguração de algumas das suas feições, um equilíbrio adequado» à sua aparição total.
O contorno do rosto de Madga imprime-se sob a escuta do Poeta, «tornado perfeitamente límpido por horas seguidas de silêncio nocturno.» Entre ambos existe um claro júbilo, onde os sinos tocam, atravessando a acolhedora atmosfera que paira nos seus inconsoláveis corações. As mãos da amada deseja tomar nas suas, como num impulso infinito de pura dádiva divina.
«Apaixonadamente» é uma antologia de cartas de amor – escritas por Rainer Maria Rilke durante o mês de Fevereiro de 1914 – seguramente incompleta, certamente inacabada, onde tudo cintila e nada acontece.
São cartas de um amor sem a enfermidade do ridículo, de que falava o Poeta português dos múltiplos heterónimos, Fernando Pessoa, na pele de Álvaro dos Campos , sempre que se referia a esse estado do ser de cada ente, abalado e embalado por tal sentimento, jamais esdrúxulo, para o Poeta de Praga.
Toda a obra denota um intenso sentimento amoroso. Sem dúvida. Mas, também, um desejo erótico, em crescendo, com o qual o Poeta não sabe lidar propriamente. Vê-se envolvido numa dimensão assaz frágil. Colocado no topos do in-habitual. Quiçá, por isso, transcenda essas franjas do ridículo de todas as cartas de amor de que fala Pessoa.
É tudo tão novo para o Rilke…! Tão súbito que, ao mesmo tempo que o apaixona e impressiona, também o surpreende e assusta. Formula, com alguma dificuldade, esse sentir, esse desejo, repletos de um prazer luminoso, mediados por uma espécie de esperança, sempre adiada.
Nas noites de Lua cheia, descobre o verdadeiro espaço do Mundo, por onde o frio intra-mundano se precipita, para congelar os corações aflitos. Pela janela do seu quarto nocturno, lê, observa, escuta, todas essas noites imensuráveis, longas, muito longas, talhadas num tempo redondo, marcadas num espaço sem limites possíveis. No entanto, não sabe mais pintá-las.
O cansaço abate-se sobre o seu corpo ensandecido. Esgota a sua mente. Finalmente, confia no sono, mesmo não querendo entregar-se ao adormecimento do seu espírito que, em frenesi se move, a cada instante. De leve, vê a sua «natureza, em tantos sítios estragada ou murcha». E, só então, «reencontra uma frescura, uma inocência profunda e escondida» , há muito, não vislumbrava dentro de si.
Tenta vencer o que há de mau, de feio, de falso, ou de mesquinho. Qualquer espécie de vulgaridade que na sua alma precinta. Escuta uma voz ansiosa, que desde a mais tenra infância, lhe soa como um aviso, como uma apelo, como um grito de alerta: «Tu, René, tu que surpreendeste que, por vezes, captas o mais subtil, o mais leve, o mais inapreensível, como pudeste tu…?»
Sabe que, até entre os objectos que lhe são mais familiares, alguns o acusam do seu definhamento, como se as pequenas raízes que haviam sido lançadas no seu coração tivessem acabado por esbarrar nos limiares da indiferença, ou se tivessem estiolado na silenciosa acusação da sua retirada, sem aviso prévio.
Rilke move-se nos labirínticos estados desse “fogo que arde”, num aparente turbilhão de jogos de linguagem que deambulam entre a pergunta e a resposta. E sempre declara o desejo de uma relação física, gravado nesse seu coração fascinado, “cheio em demasia”.
É explícito o apelo ao prazer dos corpos, tomados na sua materialidade libidinal, na sua vibração sensitiva mas, quiçá paradoxalmente, inter-seccionados no contexto de uma relação entre crianças.
Aí reina o “pólen de todo o amor” possível. A presença do Sol, numa infinita emoção que perpassa as montanhas do coração. A crescente ostentação do céu claro, transparente, luminoso, translúcido.
Escuta, em plena Primavera, o suplemento de emoção do chilrear dos pássaros, em tons puros, sob o mais flexível dos silêncios: «os passaritos nos carvalhos-verdes, abandonando a prosa, abeiram-se da poesia. O coração de um deles marulha como uma água leve. De onde vem a interioridade da criatura?»
Encontra-se com a Terra pesada, laboriosa, que alimenta as amendoeiras em flor, as rosas que desabrocham durante a noite, por entre as árvores. Um verdadeiro milagre para o olhar enternecedor dos amantes. Algures, permanecem com as crianças, de quem guardamos o viso, no âmbito de uma conexão de quase irmãos que não teriam, propriamente, o corpo sexuado, esse corpo sensual de moldagem erótica dos amantes. Tão-só, mãos e face.
Estes simbólicos elementos do corpo, bastam-lhe. São a base, o fundamento matricial a partir do qual edificará, com a mulher amada, em igualdade de circunstâncias e partilhando exactamente da mesma inocência, um corpo-outro.
Um corpo necessariamente perfeito, acabado, completo. Sempre, em estado de união. Um corpo, único, é sinal de amputação, de incompletude, de in-acabamento. Só a comunhão dos corpos é capaz de produzir essa aura redonda, onde repousa toda a perfeição e unicidade possível, nos arrebatadores enlevos da sensualidade.
Rilke sabe que o sensual não “pré-existe”. Que, neste campo, não há harmonia pré-estabelecida, tal como Leibniz a havia determinado aquando da cogitação da organização monadológica do Universo.
O sensual não é a substância da relação entre os amantes, embora dela desponte, sempre que se dá o entrelaçamento dos seus corpos. Toda a relação amorosa sensual é a fímbria desses mesmos corpos, quando inter-seccionados.
O sensual é, a limite, o resultado final dessa relação. A expressão suprema desse sentimento, cada vez mais raro: a estima magnificente entre dois corpos amigos.
O amor que nutrem, Rilke e Magda, «vem do fundo dos tempos pré-terrestres, se origina em todas as infâncias da existência, tem as suas raízes no ser original; tal como os astros se amariam uns aos outros, se conhecessem o seu próprio esplendor», escreve o Poeta, na décima carta , enquanto recorda, a “Benvenuta”, os sentimentos da sua “infância mais espontânea”, onde ainda ausculta os puros raios do seu coração em arrebatamento irresistível, somente para ela reservados.

II.

Ler «Apaixonadamente» é assistir ao “Aberto” de um espírito iluminado, exposto dialogicamente, sempre pronto a manifestar o mais ínfimo pormenor de cada pedaço de si, a conduzir o leitor a rever-se em múltiplos dos seus estados anímicos, nunca antes meditados.
É escutar o pulsar, cada vez mais vivo e intenso, de uma interioridade dada na inquietante estranheza do ser, do pensar, do estar, do sentir. Aliás, confessa o Poeta, nada é pensado antes de ser sentido. É o coração que sente. É o coração que pensa e expõe, pelas palavras que a linguagem lhe disponibiliza, mesmo que de modo insuficiente, o que no seu íntimo aflora.
A ideia comummente perfilhada de que a razão é o “capitão do corpo”, jamais se enquadra no universo conceptual rilkeano que eleva, aos mais altos picos, as margens do sentir. Assim o escreve. Assim lê e vê o Mundo, qual espaço tão vasto que o rodeia e que sempre o atrofia.
O Mundo é claustrofóbico para os espíritos mais sensíveis, para os seres puros. Já o havia afirmado Sófocles, pela boca de “Antígona”. Também ela um ente atopos, sem lugar, sem casa, sem pátria. Um ente inquietante, diria Heidegger, que vê na morte – esse outro lado da vida que não se encontra virado ou iluminado para nós – a sua autêntica morada, depois do abandono do Mundo e dos Homens.
Extravasando este horizonte restrito da mundaneidade, num ápice, emerge um “amor indizível” que os corpos, em caloroso sentir, em feliz re-união, desejam manter eterno. Este amor «tornar-se-ia semelhante ao que se tem pelos mortos. Porque acontece que quando um homem conhece a sua felicidade e quer ficar com ela, ela morre, e ei-lo que se transforma como uma mosca em âmbar, um pequenino ponto negro e morto no bonito azul da sua felicidade morta.»
Resta a evasão. Subsiste o silêncio. Reina o indizível, o inefável, quando as palavras já não amolecem mais o coração dos homens; quando as palavras deixam de possuir essa poção mágica da Lira de Orfeu, eterno amante dos dois reinos, o da vida e o da morte, que até Hades foi capaz de comover.
Em «Apaixonadamente» reúnem-se as confissões da alma de Rilke, em ininterrupto desassossego. Sempre na ânsia de comunicar com esse outro que realmente ama e que, tão-só por isso, pode compreender, com a clareza adequada, os seus estados de solidão, as suas angústias, o seu sofrimento e, até mesmo, o seu silêncio.
O silêncio sente-se, pressente-se, nas entrelinhas. Emerge no vazio presentificado pelas pausas da escrita, pelos hiatos frásicos, onde tudo se torna manifesto, sobrenaturalmente presente, pelas fendas das palavras, cuja plenitude faz nascer «todas as angústias e aflições da vida». Tudo o que é vida, existência e mundo, situam-se «sobre uma cena mais elevada, onde uma constelação e um deus se encontravam frente a frente, silenciosos.»
Rilke experimenta essa fragilidade da linguagem e do dizer do seu silêncio. A potencialidade que a habita e habilita a exprimir, de um modo mais autêntico, fidedigno ou simplesmente encantador, o seu sentir impaciente, fatigado, esgotado, que atravessa as montanhas do seu coração. Nelas ecoam todos os sons. São os lugares miraculosos de todas as escutas. Por elas caminhou, em constante sobressalto. Foi salvo pelos Anjos, captadores dos vários graus de angústia, das «ultra-radicações de felicidade que escapam aos humanos» .
Mesmo limitando-se a exprimir tudo o que lhe vem de cima, o seu sentir ferve no colo das suas próprias contradições. Só Deus pode saber se consegue fazer entender-se, quando o sentido do conjunto lhe escapa.
Mantém a sua “alma solitária”, no seio da imensidão do universo linguístico. Um “impulso infinito de dádiva”, abraça, do mesmo modo que um “sobressalto fatal”, vagueando no abandono sem limites, traçado pelo “pressentimento do estuário infinito”.
Rilke é tanto um escritor de poemas como um escritor de cartas. Também estas enlaçadas na mesma sensibilidade poética que caracteriza o espírito deste eterno viajante, pelas múltiplas paragens deste Mundo imenso, que nem sempre o acarinhou.
Mesmo tendo aberto, por toda a parte, a sua alma aos mais poderosos espectáculos da Natureza e dos Homens, o seu íntimo permanece impregnado de “culpabilidade e de tormento”. Perdeu “todo o controlo, toda a segurança própria”, inclusivamente nesse recôndito lugar do seu coração que sempre havia sido, mesmo até nas piores vicissitudes, a sua Pátria.
Uma inquietante estranheza vive dentro de si, em todos os amargurados dias da sua vida. Sente-se tocar-se com as mãos de um outro. Sente-se permanecente numa “habitação miserável”. As belas arcadas edificadas pelo seu espírito “assentam sobre a mais precária das bases”. Em frágeis alicerces de madeira se apoiam, tão-só compostos por “duas ou três pranchas”. Talvez sejam estes in-sólidos fundamentos que o impeçam de construir uma nave, ou uma torre, «onde devia ser içado o peso dos grandes sinos (pelos anjos…)»
Rainer Maria Rilke, qual Zaratustra, sempre portador de uma mensagem, tão pensada quanto sentida. Acarreta consigo uma mundivisão determinada, reflectora dos interstícios do Ser, capaz de penetrar na interioridade das coisas, de as des-velar, de as trazer à luz, de as manifestar no “Aberto”.
«Apaixonadamente» manifesta, a um tempo, a essência do homem e do artista, alicerçada em múltiplas inquietações existenciais. Esta obra não é um mero relato epistolar dos estados de alma do Poeta, ou do seu sentir íntimo do Mundo e das coisas. Epifaniza, sobretudo, o nascer da sua escrita, os momentos que vive em estado de graça, sempre que é assaltado pela lucidez das palavras.
A sua arte não se enraíza, em essência, no profundamente humano. Por isso se auto-interroga: «devo manter-me afastado dele (do humano), ignorá-lo? Nunca vir a conhecer a simples e inocente misericórdia, a serenidade e a energia íntima que ele tem para me dar?».
A resposta do Poeta é tão clara e tão contraditória quanto as interrogações que ao seu espírito assomam: «sim, enquanto o humano não me disser respeito, tenho para com ele uma compreensão amigável, é-me, mesmo no seu horror, tão familiar que tenho a impressão que seria capaz de o retomar, de o amar». Porém, de cada vez que esteve comprometido com o humano, ligado a ele, ficou paralisado, falhou, fugiu, com pavor, sem saber qual o rumo da sua evasão.
Por fim, recusou tudo. Absolutamente tudo o que é humano. Ir ao encontro dos homens, confessa, exige um esforço suplementar, que o seu espírito não suporta mais. Caminhou para Deus, que esforço algum requer à essência sã da sua alma. Amou-o, silenciosamente, como assim o determinou a direcção imperante da sua natureza.
Esta obra incomoda, assim como todas as outras escritas por Rilke, autênticos telescópios, agora dirigidos a uma pianista desconhecida, Magda Hattingberg. Quem se aproximar para a ver, observará inúmeras coisas que na sua direcção se encaminham: «céus, nuvens, objectos, fenómenos (…) tudo aquilo flutuante num espaço aberto, audacioso, profundo, tudo coisas mais intensas, mais distintas, mais válidas do que habitualmente são, muito belas, perfeitas…»
Rilke é um poeta que desaloja os seus leitores, assim que abre a sua aura, quando a alastra às coisas humanas, tão fúteis, tão comezinhas, aquém do sentir autêntico dos espíritos despertos.
Escuta os infra-sons, sempre que remove as entranhes da Terra, silente, à espera de acolhimento no seu coração, tão amplo quanto o espaço indeterminado do Mundo. Ama o “Aberto”, os Anjos, as Fontes e as Rosas. Percorre os «caminhos que não conduzem a parte alguma», no seio das florestas, desertas, abandonadas pelas mãos dos homens, jamais salvaguardadas dos perigos castradores que aniquilam o seu ser originário.
Está aí, em todos os lugares, apesar de ter escolhido ser “um guerreiro solitário do poema”, tal como se auto-retrata, em «Querida Lou». Escreveu estas cartas, em catadupa, cartas sobre cartas, a uma mulher que jamais vira. Mas a quem pede socorro, ao mesmo tempo que a previne dos riscos que correrá se, algum dia, se vier a encontrar com ele. Imagina o seu primeiro e derradeiro encontro com Magda. Nele revê toda a sua vida, a sua concepção de amor não vivido, num paradoxo, quase, infinito.
São cartas-confissões, onde vemos nascer a indelével possibilidade de uma outra forma de amar, quiçá inaudível, quiçá inconcebível, quiçá inexplicável e incompreensível. Um amor que ultrapassa os limiares do humano. Um amor outro, que só o Poeta sabe sentir, nessa relação distante que é tudo e nada, em simultâneo.

Isabel Rosete
Março, 2008