domingo, 24 de janeiro de 2010


A exaltação da palavra como elemento de persuasão
Por Isabel Rosete

Padre António Vieira é, seguramente, um grande homem das letras lusófonas que jamais poderemos esquecer. Quem ainda não o conhece não deve tardar em ler os seus escritos, não deve adiar a escuta a sua Alma – tão imensa quantas as paragens do Mundo onde esteve/está presente – seguindo, com este peregrino, os caminhos por si sabiamente indicados em «O Sermão de Nossa Senhora do Ó» e a «Liturgia de Nossa Senhora», duas obras absolutamente magníficas pela sua inteligência, sagacidade e pertinente actualidade.
Na primeira, logo no primeiro parágrafo do Capítulo I, pode ler-se: «A figura mais perfeita e mas capaz de quantas inventou a natureza, e acolhe a geometria, é o círculo. Circular é o Globo da terra, circulares as esferas celestes, circular toda esta máquina do Universo, que por isso se chama orbe, e até o mesmo Deus, se sendo espírito, pudera ter figura, não havia de ter outra, senão a circular (...)». No segundo capítulo, da obra mesma, escreve, ainda, o sábio Padre: «Uma das Maiores excelências das Escrituras Divinas, é não haver nelas nem palavra, nem sílaba, nem ainda uma só letra, que seja supérflua, ou careça de mistério».
Eis uma das grandes lições para todos nós, leitores, escritores, amantes da escrita, como forma privilegiada de comunicação e de interacção com Mundo, arautos da palavra falada, enquanto meio de explicitação dos pensamentos, dos sentires e dos saberes e, sem dúvida, como instrumento do esclarecimento e persuasão das mentes: a da perfeição, metaforicamente simbolizada pela figura geométrica do círculo – assim também já pensada pelos gregos.
Mas a “perfeição de quê?”. Poderá perguntar o leitor. A resposta é tão simples, quanto complexa: a perfeição hermenêutica da linguagem, possibilitadora da leitura do dito e o não dito; a perfeição da consciência de que a escrita não pode, ou melhor, não deve, ser supérflua, vazia de conteúdo explicito, enredada num certo jogo linguístico, onde as palavras remetem apenas uma para a outras e não mais para as coisas que naturalmente devem designar com clarividência.
A verdadeira escrita – e o autêntico discurso oral dela advindo – exige que cada proposição seja devidamente pensada em cada pormenor que o pensamento dita e a mão expõe no papel em branco que, nem tudo deve acolher, de molde a informar o interlocutor, tão-só, do que é estritamente necessário, com a objectividade do entendimento aberto, sem pré-conceitos, sem devaneios intelectuais enfadonhos, sem composições frásicas rebuscadas, que afastam do prazer do texto, até mesmo o mais devoto dos leitores.
A palavra é o elemento essencial de persuasão do discurso. E os fazedores de política, tal como Vieira, sabem que só é fixado pela memória dos auditores o que pretendemos que por eles seja interiorizado, sempre que utilizamos os vocábulos apropriados, em função da mensagem que, conscientemente, desejamos incutir.
As palavras estimulam, de facto, mas somente em função do poder retórico, demagógico – mas não necessariamente falso (antes pelo contrário, quando o discurso é digno) – que lhe queiramos incutir, embora nem sempre ao alcance de uma exegese depurada, ao mesmo tempo que guiam a mente dos ouvintes para o objectivo previamente visado por quem as pronuncia.
Como sublinha Luís Madureira, «se no Canto gregoriano a palavra é exaltada pela linha melódica, e da simbiose do discurso verbal com o discurso musical nasce uma compreensão melhor da mensagem, no discurso de Vieira a palavra conduz-nos para a frase e para uma musicalidade não expressa, mas que, poderíamos dizer, sustenta todo o texto. Juntar estas duas formas expressivas, cuja enorme elaboração visa num caso a exaltação de uma ideia, no outro a comunhão de ideias através de uma estratégia de persuasão, não é mais do que tentar aproximar dois momentos em que se pretende uma compreensão outra, ou uma compreensão melhor da palavra que nos é oferecida. É a compreensão que só é possível quando a matéria sonora que utilizamos todos os dias, pelo trabalho de um especial artífice, se transforma em obra de arte e, nessa transformação, nos permite compreender ou sentir algo mais sobre o mundo e sobre nós que só a arte, justamente, sabe exprimir.»
Lançado o repto, descubra por si mesmo, caro leitor, lendo, meditando, com toda a dedicação e espírito crítico, a escrita sublime que, para sempre, torna o Padre António Vieira mais actual do que nunca. Também, sem dúvida, um extraordinário exemplo para os políticos de hoje, de todos os tempos, que falam, amiúde, na vacuidade impura da linguagem.
Urge, por isso, consciencializarmo-nos de que:
No vazio das palavras
Ecoam todos os sons,
Todas as pausas,
Todos os silêncios.

As palavras são punhais,
Cristais,
Dardos,
Sementes de criação.

Despedaçam,
Espelham.
Reluzem,
Transluzem.

Persuadem,
Enfeitiçam.
Exortam,
Instigam…

Corpos
E almas,
À união,
E à dis-persão.

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