Um espaço de investigação, de escrita e de crítica literária; uma homenagem a todos os ecritores, nacionais e internacionais, que marcaram o meu percurso pessoal e profissional no domínio da Literatura.
quarta-feira, 3 de março de 2010
RILKE, ORFEU E A IMAGEM DA INTERIORIZAÇÃO DO HUMANO
Por: Isabel Rosete
Nascido em Praga, em 1875, Rainer Maria Rilke é checo de nascimento, austríaco por vocação, mas sem Pátria territorialmente determinada, sem Nação que seja realmente a sua.
É um viandante, como o Zaratustra de Nietzsche. Percorre as múltiplas partes do mundo, desde a Europa até ao Norte de África, sempre acompanhado pelo espírito errante de quem não tem mais domicílio determinado. Aí permanece, na infinitude espacial e temporal de todos os territórios humanos, sempre atento aos mais ínfimos pormenores que a sua longa vista alcança, aos mais recônditos sons que o seu aguçado ouvido consegue alcançar.
Adopta como sua Pátria a Poesia, esse vasto universo sem fronteiras materiais, extravasador de todos os contornos, apenas limitados pelo Espírito invariavelmente perseguido pela “grande solidão”, a única postura a que obedece, onde quer que se tenha situado temporariamente.
Mantém-se acompanhado pela Natureza, a grande mestra que tudo pode ensinar. Morreria se não lhe fosse mais permitido escrever sobre ela. A escrita. Sempre a escrita. Essa necessidade intrínseca à sua alma, infinitamente só, mas que tudo faz jorrar, de uma profunda interioridade, como uma fonte “na hora mais silenciosa da noite”.
Rilke escreve sobre as suas tristezas e os seus desejos. Escreve sobre os múltiplos e diversificados pensamentos que lhe afloram, sejam eles de vida ou de morte, de alegria ou do mais drástico e atroz sofrimento. Escreve conduzido pela convicção de que é preciso “viver tudo”, e assim amar as dúvidas e as interrogações, apesar do indizível, do inexprimível e do inexplicável acompanharem sempre o seu horizonte de pensamento, tão apegado aos maravilhosos e extraordinários silêncios da Natureza.
Sempre solitário, permanece o Poeta, para que os ruídos da voz humana não o impeçam de escutar a harmonia musical, a musicalidade inerente às coisas terrestres e celestes, ditas pelos homens, pelos Anjos, pelos Deuses.
Entre estes, Orfeu é o representante supremo. Figura profética, vagueante entre os “dois reinos”. Tudo comove e petrifica. Confere a eterna serenidade e harmonia a todos os entes com o som da sua divina e mágica lira, nele sempre ancorada como símbolo primeiro da metáfora da audição – que percorre obsessivamente Os Sonetos a Orfeu – do primogénito canto da Terra que, estando livre e sendo, em si mesma, uma dádiva, um dom, se dá aos “jogos felizes com as crianças”, sempre alegre como uma criança.
A Terra faz despoletar e florir todas as coisas, quando a eterna Primavera regressa. “A terra doa”, afirma Rilke, em Os Sonetos a Orfeu , mesmo apesar de esgotada e magoada, de manipulada pelo “Homem dominador” que a tudo lança as suas redes, as suas armadilhas, esse que não é mais fiel à Terra como as flores que “murcham arrependidas”.
Orfeu é o ícone da autêntica escuta que há muito perdemos. Ainda conserva a virgindade dessa escuta inicial que lhe permite ouvir “os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera (...)” .
Nada impede ao “deus audível” – que espanta, compreende, celebra e “canta dizível” – a escuta dos extraordinários silêncios da Terra, de cantar, com as mais belas melodias, as suas cores e as suas tonalidades mais diversificadas e características, eminentes nos negros arbustos, na folhagem envolta por um ”castanho futuro”, presentes ao longo de um “caminho poeirento”, onde o “verde desliza para o cinzento – / um cinza que, embora dominado, / contém em si tons de azul e prata”.
Um caminho que, numa outra dimensão, se mostra “sobre um pano de fundo negro e esverdeado”, onde, um pouco acima, encontramos “um salgueiro”, “ao vento / o escondido claro da sua folhagem” e ao “lado um verde abstracto, um verde pálido e visionário” que “embrulha de abandono / uma torre desagregada pelo tempo”.
A figura de Orfeu é, para Rilke, a inevitável encarnação daquele que é capaz de exaltar, de conduzir ao seu esplendor, o sentido dos sons que autenticamente escuta.
Essa qualidade é exclusiva de Orfeu, do Poeta, que sendo “dos dois reinos”, sabe que o círculo do ser de cada ente se completa com a morte, que a si tudo chama, que concede a cada um o mais veraz conhecimento de si próprio: “Só a morte em silêncio conhece o que nós somos”. Nós, essa “raça de milénios”, “nós, mães e pais / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais” .
Ah! A morte, qual limiar absoluto do auto-conhecimento; qual estado supremo da vida interior; qual ponto único e irredutível que conduz o Poeta à via da sua interiorização plena.
Rilke, o solitário guerreiro do poema, amiúde acusado de ter cultivado, de si próprio, uma imagem mística, escreve, em 20 de Junho de 1914, um “estranho poema”, espontaneamente intitulado Wendung, representante, segundo o próprio poeta, do ponto de mudança da sua própria existencialidade, garantida sempre que pega na pena para voltar a escrever, para voltar, ainda, a viver outra vez.
Aqui, onde a escrita revela e des-vela a alma mortificada, anuncia-se a necessidade de uma viragem completa de uma personalidade tão marcada pela Guerra, esse estado de ser desviante da Humanidade que conduz indignamente as coisas ao seu próprio, mas inapropriado fim.
Urge, o poeta manifesta-o, uma viragem feita de fora para dentro, e, por isso, o que até ao limiar do derradeiro momento havia sido tarefa do olhar, passa a ser Herz-WerK, quer dizer, “obra do coração”: “Porque, olha, há limites para o ver, / e o mundo re-contemplado / quer dar frutos de amor. / A obra da vista está já feita, / fazei agora obra-de-coração / nas imagens dentro de ti, / presas dentro de ti” .
O ponto de viragem impõe-se, de facto, ao poeta. E o caminho que da interioridade conduz à grandeza, passa pelo exterior, há quanto tempo já contemplado, intimamente frustrado e suplicante ao fundo do olhar, sempre envolto em contornos pouco nítidos, sob a aura de um coração sensível e de um corpo dolorosamente atormentado, que espera, no quarto da estalagem, um leito de suplício redentor .
Rilke passeara os olhos e o corpo doente pela exterioridade do mundo, ávido de impressões exógenas, buscadas em viagens pela Escandinávia, Itália, Espanha ou Egipto, embora receante de jamais poder fechar-se sobre a sua própria concha. Torna-se irremediavelmente voltado para fora. Enlaçado por uma espécie de disposição a que chama “bem-estar”, o encontrar-se numa casta de neutralidade corporal significante do não-tomar-partido do corpo, ao mesmo tempo que uma força se sobreleva e toma conta do seu interior deixando, por alguns momentos, perder no coração geral, o próprio coração, em pleno espaço de combate que a Guerra naturalmente fazia perdurar e que não é mais preciso ver, ou até mesmo lembrar.
Tal como Orfeu, Rilke sente-se desejoso de realizar a grande obra de libertação das imagens da morte presas dentro de si mesmo. Expulsa, por isso, toda a imposição exterior para re-adquirir o ritmo pessoal, não obstante a tragédia envolvente dos que partiam e dos que ficavam, nessas terríveis e abomináveis batalhas mortíferas, atormentadoras da tranquila disposição da alma do poeta que, no entanto, encerra em si a certeza obscura e íntima de que, na terrível montanha «haverá uma força a mais, e o coração tornar-se-nos-á mais forte».
Só então poderá sentir, de novo, o que há de mais sagrado e de mais puro. «Tão grande e tão sem sentido, afirma Paulo Quintela, que o morrer tranquilo e natural, aquele resvalar, insensível ou doloroso, para a morte própria que lhe era tão querida, é portador de consolação inefável. É o que diz a 4 de Outubro ao Príncipe de Thurn e Taxis, na carta de pêsames pela morte da mãe: ‘Talvez seja uma espécie de consolação involuntária que, nestes dias da morte elevada ao monstruoso, o dolorosamente natural se cumpra como que com natureza mais suave –» .
É o sentir e a meditação sobre a enormidade da matança sem sentido que perturba o espírito de Rilke, apesar de tudo apegado aos homens, cuja palavra, porém, lhe inspira medo e desconfiança: «Tenho tal medo da palavra dos homens / Eles exprimem tudo com tanta clareza: / (...) E também me amedronta o seu sentido e o seu jogo / com o escárnio, / eles sabem tudo o que há-de ser e já foi;/(...) Hei-de advertir e opor-me: Ficai de largo! / Gosto tanto de ouvir cantar as coisas. / Mal lhes tocais ficam hirtas e mudas. / Matais-me todas as coisas.” .
Os sonhos do futuro não deixam de despoletar no poeta, apesar de todas as atrocidades existenciais e dos ventos que sopram em sentido contrário. Emerge, amiúde, a esperança de que uma palavra de compreensão e de humanidade toque os corações selvagens dos fazedores da Guerra, dos provocadores das mortes inocentes, até que a guerra, esgotada, rua sobre si mesma e, então, se abram novas portas para que o futuro possa começar de novo. Mas quando? Nesta época de indigência, de infortúnio, como poderemos esperar a redenção, a salvação?
Contrariamente a Orfeu, o nosso olhar deve ser expectante. Porém, nunca os nossos olhos, tal como os dele, se poderão voltar para trás. Ainda valerá a pena caminhar de cabeça erguida, de olhos voltados para o que está, para o que há-de vir, para o infinito?
Talvez Rilke desejasse, como o “deus cantor”, descer ao reino dos mortos, morrer como os outros morreram, esses que não foram forçados a ver o horrendo e o monstruoso espectáculo que assomou o ínfimo espaço que ocupamos neste Universo, errante, que já não conseguimos mais habitar poeticamente.
É no seio desta atmosfera de mortandade geral e anónima, provocada pela Guerra, que se coloca a Rilke a problemática da morte, tão vincadamente presente em Os Sonetos de Orfeu. A morte, essa figura injusta do Destino de todos os nascentes que, dolorosamente, nos rouba os entes mais queridos.
Talvez seja mesmo este o sentido último que possamos extrair deste evento devastador e irremediavelmente presente em todas as vidas, sem excepção. Saber-se alguma coisa da própria Morte, «esse cozinheiro azulado / numa chávena sem pires / (...) essa comida cheia de obstáculos / (...) esse duro presente, / como uma dentadura postiça” :
Talvez esta aterradora experiência se desenrole perante observadores desprevenidos, se é que nos é possível imaginar a existência de olhos imperturbáveis, de olhos que apreendem e contemplam, tal como o geólogo, a rocha apenas na sua extrema dureza e apurem um outro grau ainda superior de dureza da vida, para além da morte, assim desenhada em tão grande efervescência.
Esta preocupação, esta reflexão constante sobre da morte, vai-se aprofundando, cada vez mais, no sensível espírito de Rilke para quem o sofrimento é, em si mesmo, uma forma de redenção, até se constituir como o ponto nevrálgico da sua concepção de mundo, personificada na figura de Orfeu.
Orfeu. Sempre Orfeu, o semi-deus cujo canto o torna eternamente vivo para além do seu perecimento nas mãos das furiosas Ménades que, só em aparência, conseguiram calar o som encantatório da lira que lhe fora doada por Apolo, perpetuada pela canto misterioso do rouxinol.
Aqui toma forma e expressão plena a ideia da implantação da morte na vida. A aceitação da vida e da morte mostram ser uma só coisa. A Morte é apenas «o lado da vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos».
Rilke mostra-nos, a cada momento, esta imperiosa necessidade de interiorização da morte, assim como da interiorização de Deus: a morte, que expulsámos de nós, e tornámos uma coisa absolutamente exterior, como se fosse algo que não nos dissesse directamente respeito, que não fizesse parte do curso natural da nossa própria vida. Tornámo-la cada vez mais afastada de nós. Espia-nos algures no vazio para, de repente, sem aviso nem chamamento atempado, quiçá, por uma escolha malévola, assalta-nos imprevistamente.
Assim aconteceu com Eurídice, a esposa amada por Orfeu, que, subitamente, na noite do dia do seu casamento, foi mordida por uma cobra venenosa. Impiedosamente, chamou-a para reino dos mortos, conduziu-a ao Hades, condenou-a a permanecer aí, nesse local medonho, sem o seu amado, para todo o sempre, apenas em virtude de um olhar que não resistiu e se inclinou para o lado proibido: «Ela porém ia pela mão do Deus, / travado o passo das faixas de morta, / incerta, suave e sem impaciência. / Seguia ela em si como de esperanças / e sem pensar no homem que ia à frente / nem no caminho que subi à vida. / Estava em si. E o seu ter-morrido / enchia-a toda como uma prenhez. / Tal qual um fruto de doçura e treva, / estava cheia da sua grande morte, / que era tão nova que nada entendia» .
A morte, jamais visionada pelos homens como o mais fiel adversário da vida, emerge como um “adversário invisível no ar”, qual «taça perigosa da nossa felicidade, da qual a cada momento podemos ser entornados». É-nos, afinal, tão mais próxima do que qualquer outra coisa que nos rodeia quotidianamente. Mas, mesmo assim, não podemos apurar sequer a distância entre ela e o nosso “íntimo centro vital”.
Eurídice é exactamente o arquétipo perfeito dessa presença constante da morte na vida, da inseparabilidade radical destes opostos que, a limite, se completam no ser e no estar quotidiano do homem.
Á medida que as mortes individuais, aquelas que mais directamente são sentidas pelo poeta, se vão sobrepondo à dolorosa enormidade das mortes anónimas da massa incógnita de seres humanos reduzidos à mais vã poeira de si, vai-se definindo, com clareza, no seu iluminado espírito, uma nova missão: «Se, no meio da turvação e desconcerto geral do humano, vejo ainda perante mim uma tarefa, pura e independente, é unicamente esta: reforçar a intimidade com a Morte partindo das mais fundas alegrias e magnificências da Vida: tornar a Morte, que nunca foi uma estranha, de novo mais reconhecível e perceptível como confidente discreta de tudo o que é vivo» .
Tudo se elabora e se consolida, no inconstante espírito de Rilke, de um modo verdadeiramente vivo. Tal como Orfeu, sente a estrita necessidade do imbricamento dos “dois reinos”, cada vez mais inseparáveis no existir humano, mas, cada vez mais, também, determinados por uma aparente apatia, melancolia e secura do coração. É “um estado de congelação interior” que torna esse músculo vital quase inacessível, agravado pela mais íntima necessidade de recolhimento e isolamento, dilaceradora do coração que sente.
Emerge o desassossego do mundo exterior, a insegurança de um espaço chamejante no qual já não se pode mais colocar um objecto, uma palavra, sem que, de imediato, despoletem sombras inquietas. A única saída possível é o recolhimento, entendido como o meio de alcançar um lugar mais recôndito, onde ainda se possa encontrar alguma estabilidade.
O Mundo já não é mais o lugar onde seja permitida uma plena auto-realização. O Mundo tornou-se adverso, aureolado por uma esfera de inacessibilidade perante a qual só há um caminho possível: a solidão, o recolhimento interior, o isolamento, o fechamento de si.
É o que resta ao poeta modernista que, como ninguém, sentiu e vivenciou o estado de errância do humano, impotente perante a inquietude de um Mundo que nada perdoa, mas que exige e violenta mesmo o coração sem mácula, o coração que encontra na Natureza a única e grande companheira de todas as horas de enfado ou de tédio, de alegria ou de expressividade dos que amam profundamente as entranhas da Vida, de que da Morte nunca se separa.
As expressões de desânimo e, por vezes, mesmo de desespero e de revolta, tão características dos autores modernistas, repetem-se e acumulam-se na sensível alma do poeta, depositária dos segredos da Terra, onde, desolado, consegue encontrar alguma harmonia e tranquilidade: «Eu fui pré-mundo. / Foi a Terra que me confiou o segredo, como ela faz com o germe, / para o conservar intacto. Oh as noitinhas íntimas! ambas nós chovíamos / tranquilas e aprilinias, a Terra e eu, sobre o nosso seio. / Homem! ai, quem pode provar-te a harmonia fecunda / que nós sentíamos. O silêncio do Universo nunca te será / anunciado, nem como ele se fecha em volta de alguma coisa que cresce» .
É a subversão e o enterramento do individual, a obliteração das medidas e, sobretudo, do coração individual que já não é mais medida da Terra e do Céu, mas diariamente assaltado por “sucessos e empreitadas”, que chocam o Poeta.
Não lhe pode escapar o lado sórdido da catástrofe. Não são raras as invectivas a que assistimos contra a campanha de mentiras que assomam, a cada passo, neste mundo sem freio previsível.
O mais terrível é a pobreza interior e a indizível miséria da própria vida. Já não há meios adequados que a permitam descrever. As palavras tornam-se insuficientes face à grande lamentação, ao desespero do luto: «tudo o que agora houvesse ainda para dizer, teríamos de parti-lo cá dentro com um pedaço do coração –, fica para além do exagero, para além do máximo jamais possível em palavras, e o desmedido da lamentação que de nós quer irromper pressupõe em nós, para ficar ainda dentro da medida, um ânimo infinitamente ampliado que por sua vez não se poderia desenvolver em época tão confusa e enredada» .
As palavras já não são capazes de dizer as coisas. O mundo tornou-se monstruosamente indizível. A alma do Poeta é assombrada pelo desalento, pela revolta, pela destrutividade brutal da Guerra que, tal como a cobra que mordeu o pé da formosa Eurídice – na noite em que iria desfrutar, pelo amor, dos prazeres intermináveis da tão esperada união conjugal – conduz cada ser humano à indignidade da sua própria existência, pela absurdidade em que a envolve, extravasadora dos próprios domínios naturais da Vida.
Face a um Mundo assim configurado, e apesar do seu constante grito de alerta, o Poeta sente-se impotente. Para além do recolhimento, resta-lhe o silêncio, essa outra forma de dizer o indizível. Mas não se cansa de perguntar.
Tal como Orfeu, não desiste de transcender o mundo dos vivos para o mundo dos mortos e, pelo seu terno canto, recuperar uma vida dolorosamente perdida: «Não há então ninguém capaz de impedir e de ter isto? Porque é que não há um par, três, cinco, dez, que se juntem e gritem nas praças: Basta! e se deixem fuzilar e tenham dado pelo menos a vida por gritar: basta!, enquanto os outros lá fora morrem ainda só para que este horror continue, e continue, e se não veja o fim à destruição. Porque é que...» Sim: Porquê? Pobre Poeta?»
Rilke, que traz a multidão dentro de si, impotente, desolado, recolhe-se novamente ao silêncio. Embora parta sempre das suas mais íntimas e mais centrais convicções, reconhece-se absolutamente incapaz de comunicar. Os seus impulsos mais fortes estão encerrados na sua mais tensa produção, esquivando-se a toda a censura do mundo.
“Cidadão da Europa intelectual”, como lhe chamou Paul Valéry, é uma da figuras mais puras e mais estremes da cultura europeia que, não obstante as vilanias do seu tempo, não deixa de transportar, através de céus e terras, os grandes e suculentos entusiasmos duma humanidade comum.
Guarda sempre em si uma palavra de esperança, conduzido pela ideia que move a obrigação da humanidade para um futuro comum, que culminará na união de milhões de homens em todas as terras e em todos os lugares.
Nesse instante supremo será possível falar, de novo. Quebrar o silêncio e, então, cada palavra, seja ela de amor ou de arte, encontrará um novo eco, um som inteiramente renovado, uma nova acústica, uma nova musicalidade e, até mesmo, uma atmosfera mais aberta e um espaço mais amplo que, trará ao poeta, o renovado e firme desejo de continuar a viver, em prol desta mesma esperança. Aliás, «sem ela, tudo (...) ficaria pesado sobre nós como uma montanha» .
O deus da lira, senhor do canto e da poesia, participa desta experiência preenchedora que é ouvir, escutar, e des-vela o “ante-cantar” como uno. Só o silêncio dos mortos pode ser seu par, porque a humanidade, afastada do circuito órfico, não tem o entendimento da circularidade, não canta mais o canto da Terra, sempre redondo.
Assim persegue Orfeu, ou se preferirmos, Rilke, em busca de uma espécie de “sossego musical” que faz voltar a si a Terra antiga, ainda em estado de silêncio: os ruídos “dispersos acalmam-se, ao abandonar o dia / e, em uníssono, recolhem à voz das águas”.
Orfeu e Rilke são, a um tempo, a “orelha da Terra” e a “Boca da fonte” que fala do “uno puro” e inesgotável. Da Terra sem ruídos, apenas estasiada perante a lira erguida que o louvor entoa. Da lira, que até os mortos faz erguer, sempre que tocada por esse mensageiro dos vivos, que transpõe o limiar dos mortos e que da morte faz vida.
A música e a morte são, em de Rilke, um dueto verdadeiramente inseparável. A música assalta o poeta com uma fúria rítmica, portadora de uma censura erguida contra o coração que, por vezes, não sente tal vaga e quase sempre se contenta com vibrações menores. Não tem mais “fôlego para arrancar / tempestades de som” a “trombeta do anjo” pela qual se “inicia o juízo final” .
A Música é esse “hálito das estátuas” ou, quiçá, o “silêncio das pinturas”, “a língua onde as línguas acabam”. É o “tempo posto aprumo sobre o sentido dos corações transitórios”. É a transmutação dos sentimentos em paisagem audível, a eterna peregrina onde repousa o espaço dos corações de nós liberto. Também é o que nos transcende. Também é o mais íntimo de nós, quando esse íntimo nos envolve “como o mais exercitado dos longes”, como o outro lado do ar puro que a todo o momento nos refresca a alma e nos leva o espírito para as alturas, onde repousam os Anjos e os Deuses, de um modo absolutamente puro, gigantesco, mas já não habitável .
Aliás, nós, os humanos, não somos senão apenas boca. “Somos voz só da boca” que, de repente, solta um grito quando a música já não é mais música e se transforma num ruído insuportável, afastando-nos da musicalidade original e do harmonioso canto da pura lira do “deus cantor”.
Assim se torna inaudível aquela música que deixara estupefactos, outrora, aqueles ainda capazes da escuta primogénita; que tornava suas almas infinitamente abertas aos apelos do silêncio, mostrante da escuta autêntica e da fala primeira: «Se tudo ao menos uma vez se calasse. / Se o casual e o acidental / emudecesse, e o riso vizinho: / se o ruído, que os meus sentidos fazem, / me não estorvasse tanto na vigília –» .
Seguindo de perto a natureza tão peculiar de Orfeu, Rilke constata a existência de duas realidades sem conciliação possível: a Natureza e a Humanidade. Não experienciam exactamente a mesma unidade: Não seguem os seus caminhos monozigoticamente. São campos que se dão, amiúde, na sua mais drástica oposição e paradoxalidade.
O ser humano sofre ao afastar-se da dádiva da Natureza, fonte e reserva de todas as forças que, no entanto, vai esgotando, impiedosamente, pois já não tem mais consciência dos limites da sua dominação absurdamente incontrolada e incontrolável.
Na escala ontológica de gradação de todos os entes, bitolada pelo grau de proximidade de cada um para com a Natureza, o homem, que pouco tem guardado da sua humanidade, é inferior ao animal e à planta. Distanciou-se da sua vida total, tornando-se um ser de pobreza, tal como já havia sido enunciado por Sófocles, no segundo coro de Antígona, incomparável obra de arte trágica que, como nenhuma outra, dá conta das violentas barbaridades do humano perante a Natureza, indefesa, apenas desejante de preservar o seu equilíbrio e a sua estabilidade, em toda a sua dignidade e autenticidade.
As palavras de Sófocles são, neste ponto, perfeitamente ilustrativas da posição rilkeana. O tragediógrafo grego, ainda imbuído pela áurea significante do pensar originário, apercebe-se de que, o nosso vandalismo ecológico, não é senão mais do que uma consequência inevitável de uma inquietante estranheza inicial que, bem como o poder que ela engendra, precede o homem.
É sobre esta vida que roda sobre si mesma, mas que não habita mais dentro do seu próprio círculo, que o ser humano atira os seus laços e as suas redes, quais instrumentos destruidores da ordem natural da própria Natureza. A toda a ordem tenta impor os seus jogos, por vezes, irremediavelmente esmagadores.
Devemos examinar, sempre na ausência da nossa miopia, o sentido que deve ser conferido à brilhante conquista feita pelo homem do Mar, da Terra e das espécies animais. A travessia dos mares, a abertura da Terra, com a ajuda dos arados, põe em obra o movimento de violência que é central ao homem, o qual, continuamente errando, desenraíza, forma e disforma os limites da vida orgânica.
O grande grito de alerta, surgido no já referido coro de Antígona, encontramo-lo, vivamente resplandecente, na figura do homem imperialisticamente dominador de Os Sonetos a Orfeu, o mais inquietante e prodigioso entre todas as criaturas: «Homem dominador, desde que encarniçado / andas na caça, mas sei-te, mais que rede e armadilha», cujo «matar é uma forma do nosso luto errante» .
É um ente extra-ordinário, enorme, que «co’o sopro invernoso do Noto, / passando entre as vagas / fundas como abismos, / o cinzento mar ultrapassou. E a terra / imortal, dos deuses a mais sublime, / trabalha-a sem fim, / volvendo o arado, ano após ano, / com a raça dos cavalos laborando. / E das aves as tribos descuidadas, / a raça da feras, / em côncavas redes / a fauna marinha, apanha-as e prende-as / o engenho do homem. / Dos animais do monte, que no mato / habitam, com arte se apodera; / domina o cavalo / de longas crinas, o jugo lhe põe, / vence o touro indomável das alturas. / A fala e o alado pensamento / as normas que regulam as cidades / sozinho aprendeu; / da geada do céu, da chuva inclemente / e sem refúgio, os dardos evita, / de tudo capaz. / Ao Hades somente / fugir não implora. / De doenças invencíveis os meios / de escapar já com outros meditou. / Da sua arte o engenho subtil / p’ra além do que se espera, ora o leva / ao bem, ora ao mal; / se da terra preza as leis e dos deuses / na justiça faz fé, grande é a cidade; / mas logo a perde / quem por audácia incorre no erro. / Longe do meu lar / o que assim for! (...)»
Este é o modo próprio de ser dos humanos e da sua vida de habitantes na Terra. E Rilke, que frequentou intimamente os pintores de Worpswede, sente-se participante das mesmas intenções desses artistas que captam, tal como Sófocles, em tempo de infortúnio, a essencialidade dessa habitação humana na Terra, que também é pro-dução, poihsiz, no sentido da jusiz grega que, em si mesma, dá o ser da habitação, como o cultivar e o edificar, e não mais como o destruir, o manipular ou o aniquilar.
Cultivar é vigiar o crescimento dos vivos. O Habitar indica-nos o cuidado da morada dos mortais na Terra. Um cuidado que não é senão o modo do seu sustento, do qual a Terra é fonte originária.
Worpswede é, para Rilke, o reduto onde a paisagem é admirada e respeitada em todo o seu esplendor. Pintores vieram de longe para viver nesse pedaço Natureza, para a admirar e sentir a sua força criadora. Partilhando de uma mesma emoção de vida. Pretendem que as suas obras revelem a adesão íntima ao estado de ser próprio da Natureza virgem, imaculada.
A Einfühlung, com as manifestações da Natureza, resulta de uma relação privilegiada: estes pintores instalam-se na Natureza para interpretar os seus sinais e os seus sons, para compreender, intimamente, a sua mensagem e não para a desventrar.
Rilke refere particularmente o espírito de finura de Bökclin em captar a pulsação da Natureza e de todos os seres que, real ou alegoricamente, a preenchem. Quando na auréola de um bosque, Bökclin pinta um licorne selvagem, parece incarnar nele todo o mistério da floresta. E se o pintor faz poucos retratos é porque existem poucas pessoas que revelem, no olhar, o carácter da relação que os artistas têm com a Natureza. Por isso é que para Rilke, Bökclin, é um dos pintores que mais intensamente percebeu que a fronteira que separa a Humanidade e a Natureza é perfeitamente intransponível.
Os pintores de Worpswede, tal como o poeta, perseguem a essência da Natureza. Mas ela sempre lhes escapa. A Natureza gosta de se esconder. Tem as suas próprias leis internas, por vezes, inacessíveis à mais perspicaz forma em que a inteligência humana se apresenta, como bem observaram os pensadores renascentistas.
A Natureza é indizível e até mesmo inexprimível, como o enigmático sorriso da Mona Lisa. Esse sorriso de Anjo, pintado por Leonardo de Vinci, esse tipo ideal de retrato renascentista. Um ente perfeito e misterioso, sempre a olhar para nós. Encerra diversos valores simbólicos. Insinua, a cada instante. Surge uma interrogação intelectual que, ao parecer desvendar-se, quando se desvenda, se transfigura. Com a transfiguração vem a certeza de que o sentido que parecia próximo está, outra vez, escondido, longe.
Rilke reconhece que a Natureza tem segredos insondáveis para os humanos. É mais misteriosa do que os mortos. A sua origem é mais enigmática do que a Morte e a Vida. E, contudo, os humanos frequentam a Natureza como se fossem donos dela. Com prepotência, servem-se dela e dos seus magníficos dons, explorando os seus recursos até ao esgotamento.
Estranhos da Natureza, habituaram-se a contactar com ela superficialmente. São apenas as crianças que a reconhecem como reduto matricial, integrando-se nela, com a mesma facilidade com que fogem dos adultos e dos seus hábitos.
O conforto da infância com a Natureza permanece nos adultos, exclusivamente, como memória de experiências, outrora felizes. Quando procuram as raízes da infância, a Natureza aparece como imagem desse tempo plenamente redondo, primordial e infinitamente originário.
Rilke manifesta, obsessivamente, uma ânsia de voltar à infância, de marcar um encontro com as origens, de ser novamente criança. De ser como as crianças que brincam, lá fora, passando ao lado do grito verdadeiro: “Oh fosse eu, / um menino e pudesse voltar a sê-lo ainda”, exclama Rilke, nostalgicamente, na Sexta Elegia.
É precisamente como adulto que o ser humano não vive o sentimento do todo da Natureza, não ouve o canto da Terra. Mas, «a música, sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina» .
O canto da Terra não deixa de manifestar-se ritmicamente. Na Primavera, a Terra está particularmente esfuziante, depois da invernosa reserva entorpecida em que interrompe a doação. «A primavera regressou. Em tudo / a terra é uma criança e aprendeu inteiras / tantas, tantas poesias... E, pelas canseiras, / recebe o prémio do seu longo estudo. (...) Terra que estás livre, dá-te a jogos felizes / agora co as crianças. Quem te apanha, / alegre terra. A mais alegre ganha.»
Rilke exprime com as imagens da fonte, dos frutos, das flores, das árvores, das seivas, dos sucos, dos rumores e dos perfumes, a vitalidade real em que se move a Natureza, re-completando ininterruptamente o magnífico círculo do regresso e da despedida.
A fonte, uma boca prenhe de dádivas, fala-nos do uno puro e inesgotável. Dela brota a água sempre corrente que nos chega por uma “máscara de mármore”, a «água desbordada / pra outra água à espera lá no fundo, / silenciosa aguardando a que vem murmurando / em segredo, a mostrar-lhe na cova da mão / o céu, por trás de verde e escuridão, / como coisa escondida e cobiçada (...) / pela borda musgosa a cair mansa / pra o espelho do fim que lá de baixo, baixo, / faz a concha sorrir em trémula mudança” .
Embora fale aos vivos, somente ao morto é dado beber dessa água, “aqui por nós ouvida, / quando o deus lhe acena em silêncio, a chamá-lo».
A fonte é origem. É abertura de onde irrompe a água mais pura e cristalina. É, o receptáculo de retorno. Dela se soltam falas, de uma inesgotabilidade divina. A água corrente é sonora e primordial, como o fogo, o ar e a terra. Vem de longe, transportando as falas. Porém, “para si somente / ela fala”. Sem interlocutores, a Natureza, numa tranquilidade insuspeitada, comunica o fio de harmonia captável pelos sons mais subtis: “Maçã cheia, pêra e banana, a dita / uva-espim... Tudo isto fala”. A chama, ao variar a sua forma com toda a fantasia, é um elemento de transubstanciação, e fala, também.
Entre as flores que são sempre fiéis à Terra e, por isso, murcham sempre arrependidas, a rosa, é a eleita. A rosa é a flor de Rilke. Cultivou rosas no jardim de Muzot. Dedicou-lhe um ciclo de poemas franceses – Les Roses – e escreveu para o seu epitáfio: «Rose oh Reiner Widerspruch. Lust niemands Schlaf zu sein unter so viel Lidern», quer dizer, «Rosa, ó Contradição Pura, Volúpia / De Ser O Sono De Ninguém Sob Tantas / Pálpebras» .
Em «Os Sonetos a Orfeu», a rosa é uma flor dotada de ser. Está dentro do circuito órfico. Bem perto de Orfeu. É, amiúde, conotada com algo de fundamental, ainda que não seja dito exactamente o quê.
A rosa é em si um perfume que percorre os séculos. No entanto, é vão procurar encerrá-la num nome, numa designação. Ela escapa-nos sempre. Rilke respira a rosa, ao mesmo tempo que expressa o desejo de que se dê um nome a uma variedade de rosas.
Tudo é metamorfose, fim e recomeço: «Rosa, ó rainha, outrora é de supor / fosses cálice de bordo limitado. / Mas pra nós és a plena, inumerável flor, / o objecto inesgotado. / Nessa riqueza, pões roupas e mais roupas / num corpo que é de nada senão luz; / mas cada pétala mostra como poupas / todos os atavios e como os / negas. Há séculos nos chama teu perfume / com seus mais doces nomes; de repente / como a glória paira nos ares, balança. / Ninguém sabe nomeá-lo, apenas se presume... / E uma recordação tem-no presente: / nós pedimo-la às horas da lembrança.”
A Rosa é a essência de toda a plenitude de ser. Tem um encanto natural que instaura contradição. É portadora de uma beleza peculiar que, com os espinhos, se mantém eternamente unida.
É a flor dos contrastes: da suavidade delicada da sua beleza ingénua, dada pela cor e pelo aveludado das suas pétalas, brota, ao mesmo tempo, a agressividade, a violência dos agudos espinhos, que fazem sangrar a mais dura pele.
É elevada a um nível incomparável, ao representar a transitoriedade da vida, tão cara ao Poeta. De uma forma mais delicada, ao representar o conhecimento da beleza na efemeridade, ao figurar a morte que anuncia o fim do ciclo da vida, pelo espinho que pica, e intensamente faz doer.
No entanto, o seu ser é inesgotável, na sua temporalidade e, enquanto tal, coloca-nos esse premente problema da aceitação da transitoriedade permanecente no homem e nas coisas, quando as pétalas murcham e os picos ainda permanecem. As pétalas são invólucros de um corpo que já não é nada, cuja perenidade se revela através de perpetuações eternamente perpétuas.
A Natureza, na sua ordem, manifesta uma intencionalidade que se anuncia por Leitmotive. Seria apenas preciso sentir-se parte da mesma textura para os perceber: «Escuta, ouves já os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera».
Os humanos já não têm mais a morosidade necessária para captar a atmosfera musical que se solta nos retornados círculos da Natureza. Os sons emergem da sombra e voltam à sombra, num movimento intemporal, sem que eles os sintam: «perto das sepulturas, / trazem-te os teus dizeres, os que então jorrem, / passem teu queixo de velhas cãs escuras, / pra caírem depois na concha à tua frente. / (...) Uma orelha da terra».
Os humanos têm pressa. São ambiciosos. Estranhos e distantes entre si. O ruído da vida quotidiana diminui-lhes a subtileza da audição. Já não são capazes de escutar os sons da Terra: à “orelha da terra” não respondem mais.
Os Leitmotive, expressões da vitalidade da Natureza, só os atraem para cumprirem o prazer do efémero. Os frutos inchados de maturidade são, por si, uma atracção irresistível, mas sem consequências representativas, para os humanos, no seio do ventre da circularidade da Natureza: «Onde havia palavra, há descobertas / na surpresa da polpa que se toca». «Esperai..., a que sabe... Mas foge logo após».
Tudo é breve e passageiro. Se Rilke insiste na presença do efémero é, para tornar mais claro, que a origem completa o seu arco com a morte: «Tudo isto fala / morte e vida na boca». Engana-se quem, no reino dos vivos, acredita na eternidade da Terra. O canto órfico é o alento que comove e que sobrevive quando a Natureza se desfolha.
O poeta, que sobrevive à estação da morte, está sempre preparado para acolher o futuro. A época do ano mais expoente é aquela em que, sendo já Inverno e ainda não sendo Primavera, se anuncia a renovação.
Rilke é, definitivamente, o poeta da Vorfrühling. A pré-Primavera anuncia as celebrações da festa órfica. A árvore, a água, resistiram ao tempo e à morte. Exprimem a força renovadora da criação. Brevemente chegarão as folhas. Depois, os frutos e, com eles, os perfumes.
A marcha do ser sobrepõe-se ao não-ser. A força da criação é incontrolável. Mas a alegria e a beleza não são uma conquista para a humanidade. Tudo o que vem do ser, a ele volta. A Natureza expõe-se nos seus sinais, recuperando-os no movimento de regresso a si.
O domínio dos mortos é tão presente como o domínio dos vivos. Mas só quem partilha das refeições dos mortos, pode compreender a sociedade dos vivos. Quem desce ao reino das trevas, como Orfeu, pode celebrar os mistérios da Terra. «A vós, em meu sentir presença permanente, / sarcófagos antigos, aqui venho saudar-vos» .
Os mortos são uma “presença” diversa da dos vivos. Permanecem na unidade do ser, regressados à essência da sua textura. A morte não faz parte de um estado misterioso, antes acompanha a vida como uma metade. «Como Orfeu, toco / a morte nas cordas da vida / e à beleza do mundo / e dos teus olhos que regem o céu / só sei dizer trevas (...) Mas, como Orfeu, sei / a vida ao lado da morte, / e revejo-me no azul / dos teus olhos fechados para sempre» . Orfeu frequenta a vida e a morte, sem deixar de ser presente. O seu canto é de eterna ressonância.
O reino dos mortos é sempre presente e, na sua unidade, mantém todo o passado e promete todo o futuro. Na metamorfose do visível em invisível, as metades reúnem-se. «Nós, raça de milénios: nós, mães e pais, / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais. / Sem fim aventurados, o tempo que nos resta! / Só a morte em silêncio conhece o que nós somos / e o que é que ela ganha, quando a nós empresta.»
Uma das ideias fundamentais da atmosfera rilkeana é a da morte metamorfose. O movimento de passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser é constante. Não há um princípio nem um fim, mas um encadeamento de passagens de figuras.
Contudo, no primeiro soneto, dedicado a Wera Ouckama Knoop – o nº 25 da primeira parte – Rilke não esconde a desolação e a dor perante a morte prematura com que «transpôs a porta aberta e sem consolo». É interessante constatar que este soneto que, não rodeia o espanto perante o não significado da vida, precede imediatamente o soneto em que Rilke fala da morte cruel de Orfeu pelo “enxame das Ménades”.
Há uma afinidade traduzida pelo efeito do canto de Orfeu na bailarina. Só escutando a lira, moveu o seu efémero corpo, mostrando que a dança é, também, um lugar do regresso do ser. «Sabias ainda o lugar da lira erguida, esse / onde ela ressoa –; o inaudito centro. / E por ela ensaiaste passos da tua arte / na esperança de que um dia, à festa plena, dentro, / a face e o andar do amigo se volvesse».
Antes deste segundo jogo, o da bailarina com o poeta, Rilke atribui a Wera o soneto 18, da segunda parte, fazendo participar a dança e a bailarina da superação do tempo e da exaltação do círculo órfico. “Ela dormia o mundo “. É a afirmação da harmonia silenciosa do universo”.
Isabel Rosete
Março, 2008
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