Um espaço de investigação, de escrita e de crítica literária; uma homenagem a todos os ecritores, nacionais e internacionais, que marcaram o meu percurso pessoal e profissional no domínio da Literatura.
quarta-feira, 3 de março de 2010
SIMBOLISMOS: RILKE E ORFEU
Por: Isabel Rosete
«Com o meu cantar
Seduzirei a filha de Deméter,
Encantarei o Senhor dos Mortos;
Comoverei os seus corações com estas melodias.
Hei-de conseguir trazê-la do Hades!
(...)
Ó Deus que dominas o silencioso mundo das trevas!
Para junto de ti todos os filhos das mulheres vêm sem
[excepção;
Todas as coisas belas acabam por descer ao teu reino.
És o credor a quem nunca se fica a dever.
Um momento breve permanecemos na Terra,
Depois, pertencemos-te para sempre, para todo o sempre.
Eu busco alguém que precocemente veio ter contigo.
O botão foi colhido antes de a flor ter desabrochado.
Tentei, em vão, suportar essa perda. Não consegui!
O Amor é um deus de poder infinito. Ó Rei! tu sabes,
Que é verdadeira aquela velha história que os homens
Contam.
Sobre as flores que presenciaram o rapto de Prosérpina.
Permite, então, que se urda de novo para a doce Eurídice
O fio da vida, que foi tirado do tear
Cedo de mais. Vê! peço-te pouco,
Apenas que ma emprestes, não que ma dês...
Será, de novo tua, quando tiver vivido a vida até ao fim.»
Orfeu, reconhecido como filho de Eagro (ou segundo outra versão do deus Apolo), príncipe trácio, e de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajes dos trácios. É o rei desta região. Orfeu, o cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e «cítara» como ninguém. É o único de entre os mortais, cuja arte musical é igualada à dos interpretes divinos, os primeiros grandes músicos, como Apolo, Pã ou as Musas, que não têm nenhum instrumento seu, a não ser a sua própria voz, tão extraordinariamente bela, que nada há que lhe possa ser igualado.
Da sua mãe recebera o dom da música e do canto; da Trácia, por intermédio de seu pai, o impulso de desabrochar e o desejo de expansão. Cantava melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se aclamavam. Durante a expedição dos Argonautas, no seio de uma violenta tempestade, diluiu o pânico, acalmou os tripulantes e amainou as ondas com o seu canto.
Orfeu, o sacerdote dos Argonautas, reteve a sedução das Sereias, com a sua música, que ultrapassava a doçura destas feiticeiras habituadas a desviarem o curso dos humanos em virtude dos seus dons encantatórios. A sua música é a linguagem perfeita do coração, do amor, da sensibilidade, do afecto. Em tudo penetra. É divina, demoníaca; pura embriaguez dionisíaca. Fiel companheira de todas as horas; eternamente presente em todos os actos, de vida ou de morte, de prazer ou de desolação.
Símbolo da música, da poesia e do amor, da audição intacta dos mais puros sons da Terra, Orfeu foi apenas traído pela visão. A perdição pela visão ex-tática do amor constitui o último reduto da sua própria existência. Sendo dos “dois reinos”, culmina como a sua Dríade, Eurídice, no reino dos mortos, não obstante a eternidade do seu cantar, pelas mãos das furiosas e enlouquecidas sacerdotisas de Baco, multidão selvagem, possessa com a ira da embriaguez excitada pela vista do sangue.
A música de Orfeu é isso mesmo: a linguagem universalmente eterna de todas as coisas. Mais do que as palavras despoleta o sentir e o ser de cada ente; o seu poder infinitamente penetrante comove o mais insensível; acorda o adormecido; ressuscita os amortalhados; torna visível o invisível; faz escutar o silêncio; torna animado o inanimado; move o imóvel; torna o selvagem dócil. É encanto, magia, hipnose e catarse: no seio das mais profundas tristezas faz brotar a alegria; dá força ao mais frágil dos vermes; faz repousar, torna calmos, os espíritos mais agressivos; acalma as iras e as tempestades.
É este poder encantatório da música que Rilke transporta para os seus Sonetos, ele que também é Orfeu, tal como todo o poeta. Porque afinal a missão fundante do poeta é mesmo celebrar: celebrar a palavra divina, celebrar o ser e todos os entes. O poeta está embrenhado numa ontologia fundamental. A missão de Orfeu é salvífica, tal como a de Rilke que, sob o lema de Hölderlin, está plenamente consciente de que «(...) onde há perigo, cresce / Também o que salva» . Nada é irremediável, nem mesmo a morte ...
Referindo-se ao mito de Orfeu, os gregos destacam-no, entre a mitologia helénica, por ser dos mais obscuros e carregados de simbolismo; por se ter tornado uma verdadeira teologia, que não deixou de exercer influência determinante na formação do cristianismo primitivo, estando atestado na iconografia cristã. Para os romanos, por seu turno, e, particularmente segundo Ovídeo, Orfeu assume o mesmo simbolismo: subjuga, com o seu melodioso canto e com o som mágico da sua lira, os animais e as árvores, procura Eurídice nos infernos e, igualmente, é morto pelas Ménades.
Rilke parecendo manter a tríade qualificativa de Orfeu, recontextualiza-a ao encará-la como fenómeno interpretativo do pulsar original do mundo. Os Sonetos abrem com os efeitos encantatórios do canto de Orfeu sobre a Natureza:
«E uma árvore irrompeu. Ó ascese pura!
Ó árvore no ouvido! Orfeu numa canção!
E tudo emudeceu. E o silêncio inaugura
novo começo, sinal, transformação.
Animais de silêncio saíam do arvoredo
aberto e claro, dos ninhos de descanso;
e então aconteceu que não era por medo
nem por astúcia que vinham tão de manso,
mas sim porque escutavam.»
O poder dos sons da lira do poeta não é um facto insólito. Antes se manifesta, com mais ou menos audibilidade, em todos os sonetos. Quem é Orfeu, não sendo daqui, mas se «dos dois reinos fronteiros / a sua vasta natureza cresce»? Quem é Orfeu se «sobre ir e mudar / vasto e livre dura / teu ante-cantar, / deus da lira pura»? Quem é Orfeu? O «calmo amigo de tantos longes vários, / sente que a respirares o espaço aumentas. / Entre as vigas de escuros campanários / deixa-te ressoar». Orfeu é o “deus cantor”. Eis é a evocação de uma qualidade que lhe é única. O canto prodigioso do poeta participa do canto da Terra e a forma profunda da sua existência é o seu inigualável cantar. A Terra expira o canto de Orfeu. A lira de Orfeu inspira o canto da Terra.
A Terra repousa em si. Irrompe e repousa em si, numa imensa plenitude. Orfeu escuta-a e celebra-a. “Celebrar” é o termo que serve a Orfeu: a sua missão é celebrar as coisas da Terra. O seu canto exprime o dionisismo universal. «Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar, / (...) Nunca a voz lhe falhou no pó, se fosse / do exemplo divino possuído. / Tudo se torna vinha, ou cacho de uva doce, / em seu sul sensível amadurecido. / (...) Porque ele é um dos mensageiros vivos: / transpõe o limiar dos mortos e ergue as taças / com os seus frutos de esplendor votivos.»
Orfeu move-se livremente entre as árvores, entre as folhas e as flores e os animais com uma intimidade invejável. A sua fibra é tecida da fibra do mundo e o seu canto toma fôlego no respirar cósmico universal. Cantando, o poeta sorve o mundo e volta a deitá-lo fora num movimento ritmado e contínuo. Ao seu canto associam-se o vento, os ares, os céus sonoros, o voo... e o grito também.
Se Rilke mantém em Orfeu o poder da música e o poder da palavra sobre os seres e as forças do mundo, é porque Orfeu participa “na dupla paisagem” ao mesmo tempo que representa a ligação dos mortos e dos vivos, reinos sem fronteira definida. O primeiro contacto explícito do “deus cantor” com os mortos é quando aí procura Eurídice, conduzida a este mundo pela picada de uma serpente venenosa, quiçá a mesma que expulsou Adão e Eva do Paraíso, não mais recuperado pelos humanos. O episódio de amor de Orfeu e Eurídice, mais do que uma história sentimental simboliza a estranheza dos apelos da vida e da morte, quais pólos complementares, mesmo para quem tem poderes demiurgos.
Orfeu não se conforma com a irremediável perda de Eurídice. Lamenta-se doridamente sem cessar. Nem o seu magnífico canto que os outros alegra, lhe trás a satisfação, o ânimo, a coragem. Nada consegue reparar a perda de um ente tão querido. Ovídeo em As Metamorfoses descreve, como ninguém, essas súplicas comovedoras:
«Yo, pues, con humildad os ruego y pido,
por el silencio grande y los temores
de que está lleno el reino ennegrecido,
por esta confusión y sus terrores,
que me hayáis, sacros dioses, concedido
mi Eurídice llevar y mis amores,
tornándola la vida, de que el hado
con tan temprana muerte le ha privado».
Ovídeo relata-nos ainda como o som comovedor das suas palavras e dos seus acordes se estende às forças das trevas e como o senhor dos mortos lhe concede, excepcionalmente, um favor. Eurídice poderá voltar a ver a luz do mundo se Orfeu for animado apenas pela alegria de a reencontrar Eurídice. A proibição de olhar para trás não é só a crença na palavra de Hades, mas impõem a libertação de um comportamento que o fez perder Eurídice. É a possibilidade de Orfeu se purificar. Ressuscitá-la é ressuscitar-se ou ainda dar supremacia ao apolínio sobre o dionisíaco. Orfeu, deus omnisciente do círculo órfico, hesita entre o apelo dionisíaco dos desejos mais impulsivos do seu ser ardente e o equilíbrio da concentração apolínia.
Mas, o entusiasmo dionisíaco do envolvimento com a Natureza que tudo arrebata, bem como a escarlate apologia dos sons dos frutos maduros, do livre voo dos pássaros, da frescura da água corrente, quebra a ordem e harmonia próprias da atitude apolínia.
Eurídice simboliza, pois, o lado sublime e etéreo de Orfeu. A morte da figura deixa o poeta desorientado no meio dos sons estonteantes e enfraquece o seu poder criador. Quando procura Eurídice no reino das sombras, é esse lado de si mesmo que procura. Mas, porque não terá conseguido salvar Eurídice? Porque terá sido incapaz de salvar-se a si mesmo, de encontrar o balanço entre as suas contradições? Orfeu ao perdê-la pela segunda vez não disfarça o canto amargo do desespero. Talvez só um sentimento absoluto o inspirasse a não se voltar para trás ou talvez se tenha voltado, movido pela exaltação de ver Eurídice. A traição da visão. A perdição do olhar, como já referimos, impediram-no de promover a dupla salvação
Eros , uma das personificações que aparecem nas cosmogonias pré--filosóficas, é uma espécie de “primeiro motor” – assim reconhecido por Aristóteles – que explica o casamento e o nascimento de elementos mitológicos. É o princípio primeiro que tende para a plena conservação da vida, da existência de todas as coisas, garantindo a sua suprema vitalidade, a sua eterna perpetuação.
Eros como princípio de atracção na Natureza envolve a necessidade e o seu preenchimento. Por oposição, Thanatos é a força inversa que faz prosseguir a Natureza numa luta interminável até ao inorgânico. Eros e Thanatos é o par que determina a oscilação pendular do prazer e do desprazer, do sim e do não, do viver e do morrer. No estado amoroso a aspiração à morte aparece como solução única, sublime, final. A morte é o desejo da plenitude do não-ser, da união última e per-feita. É o que resta para além do canto que já não move nem comove.
Wagner, que consumou a ideia romântica de obra de arte total, na qual convergem todas as artes, conseguiu com o seu drama musical, Tristão e Isolda , entificar em sons, uma das relações de paixão e tragédia mais mistificadas na história da música. Os mistérios do amor e da morte são de uma obscuridade impiedosa. A revelação pelo amor da unidade na vida é breve, parecendo ser tomada como abuso a experiência dessa alegria.
«Tristão e Isolda», cantando o amor ideal, provam que esse amor não pode ser consumado em vida, como não o podem ser os amores mais belos. Ao amor demasiado só a morte pertence. Nesta obra intensamente poética, a música e o poema unem-se numa construção dramática em que se manifesta a finura criativa de Wagner.
Depois de fazer triunfar, num primeiro momento, o êxtase amoroso como conquista do absoluto, repõe a humildade humana: o absoluto não é, em si mesmo, a dimensão dos vivos. É num outro estado que se dá a unidade procurada na morte, onde se encontra a síntese do eterno e do passageiro. Só na morte descortinamos domínio inexorável do silêncio apaziguador. Nela e por ela as leis do mundo e da lógica são dissolvidas na vastidão do indizível. A morte cativa ao prometer o repouso no esquecimento eterno.
Brangäne dando o filtro do amor de Isolda, que tinha ordenado o filtro da morte porque é melhor morrer – de modo nenhum a salva. O amor, “esperança imunda” não resiste como promessa de libertação. Para o amor ser eterno, o tempo teria que ser superado. E o tempo é sempre separação. A viagem, referência de temporalidade, é impiedosa com os amantes. No navio em que Tristão escolta Isolda até ao palácio do rei Marke. Os amantes dão início à sua história de perdição, da “amor de perdição”.
Eurídice, também é depositária dessa experiência viandante. Na passagem para a clareira do mundo, perde definitivamente a possibilidade de regresso. Porém, recupera a sua unidade e ganha a eternidade. Para que “ilha dos mortos” serão atirados nas suas viagens? A de Arnold Böcklin parece pronta a recebê-los: uma rocha corcovada num mar negro e encrespada de ciprestes. Os buracos na rocha assemelham-se a catacumbas prováveis para as urnas que fazem a travessia num barco para a última viagem.
Max Reger – que seguindo o estilo perpetuado por Brahms, compôs música com uma harmonia cromática inigualável, como podemos vislumbrar nos seus quatro Poemas Sinfónicos segundo Arnold Böcklin – bem como Sergei Rachmaninov – que compôs em 1909, seguindo de perto o estilo de Cajkovskif, o poema sinfónico intitulado a Ilha da Morte – fazem a escolta dessas almas com uma sumptuosa angústia sonora. Rachmaninov, na introdução do poema, sugere o movimento surdo dos remos que se intensifica à medida que o barqueiro prossegue a viagem. É no episódio em que faz a evocação da vida passada, dos seus lamentos e dos seus júbilos, que o computador atinge um pathos orquestral pleno de visualidade.
A vida e a morte seduzem e perturbam como duas manifestações da mesma energia cósmica inicial. Rilke dá conta do esforço de ser de todas as coisas e Os Sonetos a Orfeu não deixam de manifestar a dificuldade em abranger a vida e a morte. Das Elegias diz Rilke que a «afirmação da vida e da morte constitui uma única e mesma coisa». Aliás, «reconhecer uma sem a outra – e é isso que aqui se experimenta e exalta – uma limitação que acabaria por excluir tudo o que é infinito. A morte é o lado da vida que está distante de nós que nós não iluminamos». Por isso, «é nosso dever tentar alcançar a maior consciência possível da nossa existência, à vontade em ambos os domínios e deles se alimenta inesgotavelmente... A verdadeira forma de vida cruza ambos os campos, o sangue da grande da grande circulação passa por ambos: não há nem um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade, na qual estão à vontade os “Anjos”, seres que nos superam.»
Com a superação do tempo, a afirmação reversível da vida e da morte teria mais evidência. Assim, é preciso fazer a travessia do tempo até atingir a libertação do mundo e ser conduzido a um outro ponto supremo, que seja, a um tempo, eterno e ilimitado. O não-ser é o verdadeiro lugar do regresso do ser a si. «Quem com mortos deve / papoilas comer /( nem o som mais leve /voltará a perder». (I-9)
Com a morte o ciclo completa-se: os mortos recolhem à fonte originária. Os sons da Terra são testemunhos desse estado fundador para quem estiver atento, porque «flores, parras e frutos por costume / não falam só a língua da estação» .
O passado e o futuro são categorias quase esquecidas. Estar aqui, no mundo, é fruir de um imenso agora, um eterno presente. Por isso, a morte é tanto uma ideia sempre próxima de Orfeu. Ele não é só um aqui, é um ser “dos dois reinos”. Orfeu não tem pátria, tal como Rilke, mas a Terra é o seu abrigo apropriado, o seu topoz, o seu lugar natural. Orfeu canta o eterno retorno da Terra, move-se na qualidade de participante do ser da Terra e da sua finalidade eternamente sem fim.
Isabel Rosete
Março, 2008
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